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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Uma dívida de gratidão

A biblioteca da escola onde fiz o Curso Comercial funcionava muito bem, graças à dedicação e ao esforço da professora responsável, que teve um papel fundamental na minha orientação como leitor.

Nem todos aceitavam a sua orientação, parecendo, até, que provocatoriamente  pediam livros que sabiam serem recusados para darem vazão à rebeldia da idade: — Se não posso ler o que quero, não leio nenhum outro!

Também a mim me recusou alguns títulos: lembro-me, por exemplo, do Amor de Perdição:

— Ias precisar de muitos lenços para as lágrimas! Lê primeiro este… Só viria a ler, deslumbrado, o Amor de Perdição já adulto, pelos meus vinte e tal anos. Mas valeu a pena a demora, porque, então, o soube apreciar, lendo muito para além do triângulo amoroso Simão-Teresa-Mariana. E continua a ser uma das minhas obras favoritas.

Foi com essa professora que eu, leitor preconceituoso, comecei a ler ficção científica, ao ponto de ficar viciado no género e na colecção Argonauta: As Flores que Pensam, obras de Ray Bradbury, Clifford Simac, Azimov …E também não-ficção: A Expedição da Kon-Tiki, À Margem do Tempo... Fiquei, aliás, muito surpreendido, quando me disse (conversávamos muito) que nos países anglo-saxónicos se lia muito mais não-ficção do que ficção. Como também eu hoje faço.


Saí da escola, deu-se o 25/4. Em conversa com alunos, perguntei pela professora.

— Ah, saneámo-la da biblioteca!

— Mas porquê? Ela e o marido até eram oposicionistas!

— Pois, mas quando queríamos trazer um livro, não deixava e mandava outro!

E perdi-lhe o rasto. Mas não a consciência da dívida de gratidão, que me levou a registar na dedicatória do meu primeiro romance, Do Lacrau e da Sua Picada:

“A duas das professoras a quem mais devo:

− Margarida Martins d’Aires Filipe, minha professora primária;

− Margarida de Carvalho, professora de Português na Escola Industrial e Comercial de Leiria.”


Pouco depois, foi a minha vez de lutar pela promoção da leitura. Bibliotecas de turmas, exposições orais de livros feitas pelos alunos, visitas de estudo à biblioteca municipal, a pé, tentando que se inscrevessem como leitores e requisitassem livros para depois falarem deles nas aulas…Batalhei muito na área.

Por vezes com a satisfação profissional que traziam os pequenos sucessos, por vezes citando mentalmente o profeta: Eu sou a voz que prega no deserto…

”Valeu a pena? /Tudo vale a pena se a alma não é pequena” (Fernando Pessoa).

quarta-feira, 3 de abril de 2024

“Viva la libertad, carajo!”

 “Viva la libertad, carajo!”

Berra MileI, o presidente da Argentina, no fim do seu discurso sobre as Malvinas.

Curiosa esta mudança de linguagem, de estilo, de ideais até: uma certa direita, que tradicionalmente enchia a boca com Deus, pátria, família, agora enche-a com o “carajo”.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Dia dos namorados

Já D. Dinis, um dos nossos melhores poetas, na cantiga de que abaixo se transcreve um fragmento, descria da paixão daqueles que apenas a sentem e a exprimem numa época fixa: o “tempo da flor”. Por muito bem que os seus cantos amorosos soem (Proençaes soem mui bem trobar), censura-lhes a insinceridade, o convencionalismo, a observância do calendário, incompatíveis com uma paixão sincera.

De então para cá (D. Dinis morre em 1325), assistimos a um afunilamento no horizonte temporal da expressão  das paixões, que passaram do tempo da flor para um (e um só)  dia oficial — o dia de ontem, proclamado  dia dos namorados pelos areópagos do consumismo . 

Estou a ser injusto: há também dia para beijar (13 de Abril). Dois dias num ano inteiro. 

Nada como ter a vida organizada, os amores calendarizados, ser como toda a gente, até porque, já que falo de amor, tenho de recordar a máxima do senhor de La Rochefoucauld: há pessoas que nunca se teriam apaixonado se não tivessem ouvido falar de amor. 


“Proençaes soem mui bem trobar

e dizem eles que é com amor;

mais os que trobam no tempo da flor

e nom em outro, sei eu bem que nom

ham tam gram coita no seu coraçom

qual m'eu por mia senhor vejo levar."

D. Dinis

(Proençais: cantigas de amor à moda Provençal; Coita: sofrimento amoroso; mia senhor: minha senhora)

FOTO: antes de haver dia dos namorados e dia do beijo.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Deus existe?

 Deus existe? (Comentário a um post alheio)


Há dois problemas que condicionam tanto as perguntas como as respostas: (1) a linguagem que formula as primeiras e enforma as segundas e (2) os nossos cérebros de primatas, que percepcionam o Cosmos a partir de sentidos que não evoluíram para o compreender, mas para sobreviver nas savanas africanas.

Pensamos com palavras e, como notou Saussure, o pai da linguística, sem elas talvez nem exista pensamento estruturado, ou, pelo menos, pensamento abstracto; mas, todos sabemos,  as palavras e a lógica que com  elas se constrói não são necessariamente conformes à realidade observada (e.g., o Sol nasce de manhã) e não  são seguramente adequadas para formular questões metafísicas: que é Deus?  Se falamos do Jeová bíblico não será difícil negar o seu papel criador, mas se a hipótese de muitiversos nos parecer pouco elegante haverá que procurar hipóteses explicativas para o facto - assombroso - da perfeita afinação das leis físicas.

A nossa capacidade de conhecer o Cosmos parece ser,  também, limitada pela nossa estrutura cerebral, se assim posso dizer: até ao momento, e com toda a nossa tecnologia, conhecemos apenas 5% do Universo; aos 95 % em falta, chamamos energia e matéria escuras. E não fazemos ideia -eu não faço - do que seja o Espaço ou o Tempo, nem se a luz é corpuscular ou ondulatória, etc.

A pergunta Deus existe? pode nem sequer fazer sentido. Nada obriga a que o signo  tenha correspondente (o referente saussurreano) e  nada garante que, no estado actual da ciência, se surgissem  possíveis respostas tivessem significado compreensível para nós. 

Deposito as esperanças nos avanços da ciência, com o receio de que as respostas  não cheguem no meu tempo. Um contacto com civilização alienígena também poderia trazer alguma luz. Enquanto tal não sucede, sinto-me como a rã no fundo do poço. Da ignorância. Crente, agnóstico, ateu? Um pouco disso tudo, conforme o significado atribuído às palavras.

sábado, 8 de julho de 2023

O teu ioiô

 Enquanto deixo passar a hora de maior calor, ouço na televisão um cantor: "Tu passas por mim com o teu ioiô". Se tivesse uma voz   prodigiosa , até podia pedir um Mercedes Benz e uma televisão a cores, como a Janis Joplin, que nos deixava deslumbrados. Mas a voz é banal, talvez uma terceira voz dos meus tempos de ciclo preparatório — eu era da quarta, e da única vez que me atrevi cantar levei uma bofetada do mestre de Canto Coral — que se aproveita, então? A música pimba, igual às outras do género? O “boneco”?

 Deixo de lado a voz, um dom que se pode trabalhar, se houver por onde, e a música, arte que deveriam estudar tendo em conta o métier escolhido. Fico pelas letras, certamente o mais acessível.

Ora  sempre me admiro quando os ouço e dou por mim a comentar: mas esta gente não se ouve, não se enxerga? Querem trabalhar na música e são insensíveis à musicalidade das palavras, ou, no caso, à ausência dela? Suponhamos que relacionamos cada sílaba com uma cor. Que temos no citado verso? Um amontoado de cores sortidas, que não combinam entre si. Como é possível que se esmerem na composição do "boneco" e sejam tão desleixados, ou insensíveis, quanto ao que cantam?

Mais: como é possível que tantos artistas, de valor igual, pululem pelo país fora e encham as tardes de sábado das televisões, sem voz, sem música, com letras prosaicas e triviais? Onde esperam chegar? Ou a auto-satisfação por aparecerem na TV basta, desculpa, justifica tanto apego à mediocridade?

Pêlo na venta e sandes de presunto

A empregada do café tinha pêlo na venta. Era sobretudo com os proprietários de segunda geração, da idade dela, que espingardeava:

Hás-de arrumar essas garrafas de gás vazias… mandava o genro dos “donos velhos”.

Arruma-as tu, que tens bom corpo para isso! E bem folgado!

O patrãozinho fervia de raiva, ralhava.

E ela: Olha lá, porque é que me não despedes? Fico em casa a receber o subsídio de desemprego, e não tenho de te aturar!

Entrei com um amigo para almoço frugal, de trabalho no campo: Duas sandes de presunto  e duas cervejas, faz favor.

Abanou a cabeça: Comam de queijo.

Está bem, anui..

Mas o meu amigo é casmurro: Mas tem ali presunto, porque é que tem de ser queijo?

Interrompi-o: Não teimes, comemos sandes de queijo, depois explico-te.

Não se calou às primeiras. Comidas as sandes, bebidas as cervejas e o café, já fora, voltei à carga: Ó meu sacana, não percebeste que o presunto deve estar estragado?

Ah, era isso? Porque é que ela não disse?

Com a patroa ao lado e o café cheio?

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O 1 de Maio de 1973

Meses de agitação intensa, as noites nas ruas a fazer pinturas, os dias em manifestações, tinham mandado para a prisão muitos de nós, alguns dos melhores de nós. Dois anos desta vida sem ser preso era prova da minha habilidade, do cuidado com que aplicava todas as precauções revolucionárias, evitando ser seguido, muitas vezes dormindo fora de casa, que era o meu quarto de estudante, na Rua Poço dos Negros. Também me faltava a coragem de me medir com a polícia e as suas torturas, de me querer pôr à prova para saber se, como verdadeiro revolucionário, enfrentaria sem ceder as torturas em Caxias, sobretudo a que mais receava: a do sono.

Por isso, ao contrário de outros que pareciam tudo fazer para serem detidos e na prisão ganharem o estatuto de heróis — ou descobrirem que ainda não estavam devidamente preparados politicamente como filhos do Povo para resistir a duas semanas de tortura do sono — eu evitava ser preso, arriscava o necessário, mas não mais, dissimulava-me constantemente, encorajado pelo meu controleiro, um clandestino.

Mas no primeiro de Maio de 1973 tinha o pressentimento, estava firmemente convencido de que seria finalmente preso — ou morto. Tirei do quarto todo o material comprometedor, livros, panfletos, equipamento artesanal com que os reproduzia e pu-lo a salvo em casa de amiga. Logo de manhã, como cristão que se prepara para a morte, assisti à nossa missa comunista, no cemitério junto à campa de Ribeiro dos Santos, o primeiro mártir da nossa causa.

Saldanha Sanches fez belíssimo discurso, comovente até às lágrimas: também nós devíamos estar prontos a dar naquela tarde as nossas vidas pela revolução.

Como condenado que vê os seus dias chegarem ao termo e se desforra na última refeição, gastei dinheiro que deveria durar mais uma semana em almoço em restaurante melhorzinho, bebi até -- luxo a que de ordinário me não podia dar — uma cerveja, Carlsberg. 

E à hora da manif, segui para o Rossio, pronto para o que desse e viesse. Habituado a manifestações com escassas dezenas de estudantes, sempre os mesmos, exceptuando aqueles que iam sendo presos ou desertavam da causa, assombrou-me ver a praça apinhada de gente, povo!, esse povo em nome de quem há tanto falava, que procurava agitar, trazer à rua, amotinar contra o regime. Do alto de um edifício, por cima do Diário de Notícias, a Pide (quem mais poderia ser?) filmava-nos ostensivamente, ameaçadoramente, e os populares faziam-lhe manguitos destemidos. Senti ali começar a revolução almejada.

Subitamente, a polícia atacou com canhões de água, empurrando-nos dali para fora, rua do Ouro abaixo. Avistei o meu controleiro, ali, à luz do dia: Vamos voltar para o Rossio e tomar a praça! 

Por todo o lado, cacetadas, espancamentos da polícia de choque, o capitão Maltês a comandar. Todos os acessos estavam barrados. Entrei em autocarro apinhado, que havia de entrar no Rossio, fiz comício no interior para trabalhadores assustados comigo, com a polícia que, fora, em todos, em tudo, batia. Vejam, quem trabalha leva porrada! Viva o primeiro de Maio! O primeiro de Maio é vermelho!, mas o condutor recusou abrir as portas dentro da praça, certamente para a polícia não entrar.

Batemo-nos noite fora. Escapei. Pouco depois, denunciado, abandonei os estudos e a capital, fui viver para a Marinha Grande, a trabalhar em Leiria nas obras primeiro, como operário de plásticos depois. Participei na organização do primeiro de Maio vermelho de 1974, na Praça Stefens, lição para os “revisas”, que a tal há muito se não atreviam. 

Deu-se o 25 de Abril, quando cheguei naquela manhã, pronto para a luta, os soldados que nos deveriam reprimir tinham cravos vermelhos nos tapa-chamas das G3, o ambiente era de festa, como se a guerra colonial tivesse acabado, os amanhãs já cantassem...

E nunca mais comemorei nas ruas o primeiro de Maio. 

terça-feira, 2 de maio de 2023

Um amigo perdido no tempo e no espaço

 O Vasco, via-se à distância, só podia ser um revolucionário: enorme, o mesmo sobretudo escuro de Verão ou de Inverno, boina basca sobre a desgrenhada cabeleira negra encaracolada e sebenta, barba imponente à Fidel de Castro, a tiracolo bornal militar comprado na Feira da Ladra, azedo no falar, quase grunhidos em algarvio cerrado. Inevitavelmente, pelo menos aos olhos dos estudantes, sobre ele recaíam as suspeitas de autoria e distribuição dos panfletos, da colagem dos “selos”, etiquetas autocolantes com palavras de ordem anticoloniais, das pinturas que volta-não-volta decoravam a fachada do Instituto; e ele, agradado com essa imagem, nada fazia para se livrar de suspeitas, antes pelo contrário, sempre que podia distribuía a propaganda associativa, por convicção, talvez também por desejo de brilhar e, eventualmente, vir a ser recrutado.

Tão exposto, parecia um perigo para as organizações clandestinas: um liberal, um pequeno-burguês, demasiado fácil de vigiar pela PIDE, útil, mas sem lugar nos comités clandestinos que se moviam nas sombras. Mas, se eu nada lhe confidenciava que sugerisse o meu envolvimento na luta clandestina, nem lhe dava “tarefas”, acabámos por partilhar um quarto na rua de Arroios durante dois meses.

Longe do Instituto, com as cantinas fechadas uma após outra pela polícia, as minhas despesas aumentaram tanto que nem a comer nas mais baratas das tascas para trabalhadores cabo-verdianos o dinheiro me chegava até ao final do mês — eu era boa boca, comia tudo, mais interessado na quantidade que na qualidade, mas, mesmo assim, a fome, crónica, endémica, atormentava-me. Como os cearenses de Josué de Castro, que tinha lido recentemente, também eu tinha a cabeça cheia de comidas imaginárias… o Vasco, mais abonado, sugeria-me que “tirasse” comida nos supermercados, como ele e outros revolucionários faziam frequentemente; mas não nasci para ladrão, e roubar, mesmo disfarçado eufemisticamente de “expropriação da burguesia” era, para mim, mais intolerável que a fome que me roía nesse final de Maio. 

Em desespero, escrevi à minha avó, perguntando se me podia enviar um coelho OU uma galinha. Dois dias depois, para minha surpresa, chegou à camionagem a encomenda, com um coelho E uma galinha! Vim a saber que um primo, ao ler a carta, que a minha avó já não tinha olhos para tal, trocou o “ou” por “e”. A namorada do Vasco cozinhou os bichos e, para se não estragarem, empanturrámo-nos com eles durante uns dias, tirando eu a barriga de misérias até à chegada da próxima carta dos meus pais, emigrantes na Holanda, com a mesada de Junho.

Findo o ano lectivo, separámo-nos. Embora amigos, não me convinha a sua curiosidade: onde foste, de onde vens, vieste tarde na noite passada, onde vais…

Só aí por 76 ou 77, nos voltámos a encontrar. Veio falar comigo a tentar demover-me: eu tinha apresentado pedido de demissão, certo da inevitabilidade de expulsão por “seguir a linha de direita”, como me acusava a miudagem ultra-radical entrada no pós-25 de Abril. 

O seu aspecto era o mesmo, mas o ar tenebroso era agora adequado: guarda-costas do Arnaldo Matos. E confidenciou-me: também ele só não tinha ainda mandado tudo isto à merda por causa do “homem dos bigodes“, a quem o ligava profunda lealdade e admiração.