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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Cartas de amor

“Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.”
(Álvaro de Campos)

Estava no turno da meia-noite às oito quando camarada recentemente admitido na fábrica veio ter comigo. Tinha a tropa feita, queria constituir família, contava, e eu ouvia-o, sem nunca desfitar a máquina nem me desconcentrar, que ali as distrações pagavam-se caro: queimaduras, dedos esmagados, mãos amputadas até. 
Contava ele que tinha posto anúncio em revista feminina, não me recordo qual, uma dessas coisas do género Cavalheiro empregado, de vinte e tantos anos, situação militar resolvida, procura moça honesta, entre os vinte e os trinta anos para relacionamento futuro.
Eu era então muito preconceituoso, desconhecia que até Agustina tinha arranjado marido por esse processo; e depois, pareciam-me arranjos de conveniência, seguramente sem o fogo da paixão, que não sabia ser luxo ao alcance de poucos felizardos — como eu.
Ouvia, no entanto, sem grandes objecções. Um revolucionário tem de se mover no seio do povo como peixe na água. 
Ora uma rapariga tinha-lhe respondido, prosseguia o meu camarada de trabalho, estendendo-me a carta.
Agora não posso ler, disse, a tentar safar-me das confidências. 
Estou na minha folga — cada um tinha uma de meia hora ao longo da noite, substituído pelo chefe de turno, pois as máquinas não podiam parar — lê, que eu faço o teu trabalho.

Vendo pelo remetente que respondia de Santa Margarida: Maria Machado? Estás a ser gozado! nos quartéis não há mulheres! É mas é algum soldado! Respondeu-te para se rirem de ti!
Mesmo assim, dizia, queria que lhe respondesses!
Eu? Mas a carta é para ti!
Sim, mas tu tens alguns estudos...
Só o Ciclo, atalhei, na pressa de esconder as habilitações e ali estava quase clandestino, forçado a abandonar a capital pelas minhas actividades clandestinas. E para criar comités anti-coloniais nas fábricas.
Tens estudos, lês, escreves de certeza bem melhor do que eu. Responde lá.
Tínhamos toalhas de papel para colocar sobre as bancadas de trabalho e não sujar as peças. Numa delas, redigi a resposta. Fria, irónica. Os magalas não se iam divertir à nossa custa!
Agora passa para papel de carta e vê se não dás erros!
E voltei ao trabalho,  julgando que o assunto estava encerrado.
Na semana seguinte, já no turno das quatro à meia-noite, ele voltou, risonho, com outra carta. Li-a alto.
A Maria Machado pedia desculpa. Tinha respondido ao anúncio no gozo, para se divertir com as colegas, julgando tratar-se de parolo. E em tom sincero, explicava-se: morava no Entroncamento,  e trabalhava num dos quartéis como funcionária administrativa. Terminava repetindo as desculpas e com desejos de que lhe respondesse porque, via-se, tratava-se de pessoa culta, séria, com quem valia a pena corresponder-se...
Vês, eu tinha a certeza de que tu eras capaz! E foi envaidecido que respondi, já a atirar-me, que é como quem diz, a atirá-lo à moça. Olha, este domingo vou estar com a minha namorada, que é de lá, pergunto-lhe se conhece uma Maria Machado, que trabalha em Santa Margarida.
Conhecia. Ah, o Machadão! Assim a tinham alcunhado na escola, desajeitada, mal-feitona, maria-rapaz.
Nada disso demoveu o meu camarada. E em breve consegui-lhe encontro.

O primeiro e o último. A Maria Machado, mesmo feia e sem jeito, ainda se não sentia tão desgraçada que tivesse de o aceitar!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Uma vila do interior

Ontem estive em Mora, outra vila envelhecida, despovoada. Ao almoço, excelente, na Tasca do Gigante, o proprietário, ao pé de mim um gigante, conta-nos isso mesmo: por aqui, ou se trabalha por conta própria, ou para a Câmara... De resto, não há nada! Nem empresas que dinamizem a economia local, nem empregos que fixem os jovens!
Mora merece visita: além da Tasca do Gigante, tem o Museu do Megalítico e o Fluviário. E, certamente, outros pontos de interesse, que não conheço. Mas isto não chega para fixar as gentes, para atrair a juventude.

Anos atrás, em Meda, outro jovem fez-me idêntico desabafo. Nada, fora do escasso turismo, dos serviços camarários. Podia multiplicar os exemplos, que gosto de percorrer o interior e ouvir as gentes. 
Fora das cidades, o país definha, agoniza moribundo.
Em 93, incomodado pelo abandono do interior, escrevi:
 Pelas auto-estradas que conduzem aos centros comerciais
telemóveis saúdam as novas catedrais
(Por aí fora, o abandono
Matas queimadas, hortas perdidas
peixes lançados ao mar
fábricas fechadas, reformas antecipadas
país de alheio dono
Desespero do desemprego, aldeias abandonadas
oh subsídio-servo-dependência!)”