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sexta-feira, 22 de abril de 2022

A minha primeira bica

 Aí pelos meus doze anos, aldeão a estudar na vila, fui convidado por colega mais velho para ir ao então café da moda em Alcobaça, o café Portugal. Comecei por recusar, sem confessar que, para além da escassez de dinheiro, tinha vergonha: nunca tinha entrado em café, e logo nesse tão chique?

Mas a companhia e a curiosidade venceram. Eis-nos sentados, o empregado de bandeja na mão a perguntar o que é que os senhores vão tomar?, e eu sem saber o que pedir que pudesse pagar e não revelasse a minha ignorância rústica do que se consumia em tais estabelecimentos; o meu colega pediu uma bica e eu imitei-o, convencido de que seria algo semelhante a um copo de laranjada, na época a minha bebida de sonho, que apenas bebia em casamentos e baptizados.
Logo que o empregado se afastou, bichanei, preocupado: quanto é que custa? Dez tostões. Fiquei mais descansado, tinha mais do que isso na algibeira, certamente para a sopa do almoço na cantina da escola.
E vieram as bicas. Grande desilusão! Em vez de copo de doce laranjada, um poucochinho de café negro como carvão, que quase não cobria o fundo da chávena! Tão azedo, que nem o pacotinho de açúcar SEMPA logrou adoçar. Devo ter-me queixado, ou a minha cara ao provar a bebida terá revelado ao meu companheiro que o único café que conhecia era a cevada do pequeno-almoço.
Não gostas? É a melhor bica de Alcobaça!
E eu a tentar disfarçar a minha saloíce: é pouco açúcar …
Ele pegou no pacote vazio e repetiu a anedota do labrego que chamou o empregado e protestou pela escassez de açúcar, descodificando a marca SEMPA: Só Esta Merda Para Adoçar?
O empregado retorquiu, lendo ao contrário: Adoça Pouco Mas É Suficiente!
Não foi, portanto, paixão imediata o meu gosto pela “bica”. E não me recordo de ter voltado ao café enquanto estudei em Alcobaça.
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quarta-feira, 13 de abril de 2022

O silêncio é de ouro

Ensinaram-me os anos a desconfiar de quem se chega melífulo, palmadinhas nas costas, sempre sorrisos, abraços, beijinhos — como o velho Malhadinhas, lembram-se? O do Aquilino,  que por entre pias demonstrações de afecto ia enterrando a navalha nas tripas da vítima. 

Ensinou-me a dura experiência que muitas pessoas boazinhas, caridosas ou solidárias, independentemente do seu posicionamento político, são na realidade interesseiras, más, egoístas, não raro velhacas e vingativas. Que se regem menos por padrões morais, que, aliás, distorcem segundo as suas conveniências, mas sobretudo pelo egoísmo, por impulsos e motivações animalescas. E depois, com os artifícios da linguagem, distorcem, explicam e justificam o injustificável.

Pior ainda. O nosso cérebro mamífero adora rituais, hierarquias, submissão, e resiste à aprendizagem. As ideias esgrimidas pelos adversários normalmente entram por um ouvido e saem pelo outro — sem deixar nada dentro.

Duvidam? Experimentem convencer, recorrendo a factos sólidos e argumentação lógica, um crente de que a sua religião é um embuste, um fanático de futebol de que o seu clube é beneficiado pelas arbitragens, ou um adepto das praxes da vergonha que é a existência de tais práticas, sobretudo em meio que se presume intelectual.