terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Idiossincrasias

Na Faculdade de Letras de Lisboa havia então, a par de alunos que se não podiam dar ao luxo de reprovar e lutavam para fazer todas as cadeiras do ano com dez que fosse, uma minoria, mais ou menos aristocrática, que se limitava a uma ou duas disciplinas por ano, com notas altíssimas, com o fito de ficarem na Faculdade, primeiro como monitores, depois como professores.
Não se misturavam connosco. E se, por vezes, com grande azar e deficiente informação calhavam em turma de professor que lhes não aparava o golpe, desistiam logo ao primeiro teste, não sem antes fazerem valer ruidosamente as suas razões, protestando o catorze ou quinze, alegando incompreensão, insinuando incapacidade científica daquele professor para avaliar com justiça o seu talento e mérito. E nós, a ralé, divertidíssimos a assistir.
Lembro-me de um desses casos, passado em Literatura Portuguesa II, com a Professora Doutora Lucília Pires, com quem muito aprendi – e veio a revelar-se de muita utilidade no desempenho da minha profissão.
A aluna, empertigada, snobe, esgrimia isotopias e distopias, Greimas e modelo actancial, trazia à baila a nota do ano anterior com outro professor, que, esse sim, tinha-lhe feito justiça, despudoradamente evocava elogios recentes da docente de outra das cadeiras. Calmamente, sem jamais levantar a voz, a Professora contraditava a argumentação. Se entendia que teria melhores resultados com outro colega, pois que mudasse, a ela nenhuma diferença lhe fazia; as notas de um ano numa cadeira não vinculavam os professores futuros; e, o mais importante, – A sua análise do texto de D. Francisco Manuel de Melo passa ao lado do tema...
– Isso são idiossincrasias, responde a aluna incompreendida, e sai porta fora para não mais voltar.
A professora prossegue a aula como se nada tivesse ocorrido; mas a nós a curiosidade não nos dava sossego. Idiossincrasias? E a palavra articulada com a segurança de quem vê nela serial killer argumentativo! Como assim?
A aula a terminar e nós a correr para a biblioteca a confirmar o significado das ditas cujas:
– Vês, empregou mal o termo!

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