terça-feira, 2 de junho de 2015

Leiria, finais dos anos sessenta

A cidade cabia toda no olhar se a observássemos de um dos pontos mais altos, como o Castelo ou a Senhora da Encarnação. Ia-se a pé a todo o lado, esquivando nas ruas antigas os carros impacientes, de buzina fácil, novos senhores da cidade frequentemente envolvidos em toques e choques. Logo acorriam mirones das lojas e cafés, formava-se ajuntamento, todos conhecedores do código da estrada, estalavam discussões gritadas, por vezes violentas,
-- Este senhor é que tinha prioridade porque vinha da direita!
-- Qual prioridade, qual quê, o senhor não parou porque não quis, já eu tinha passado o eixo da via quando me bateu!
-- Quem bate por trás é sempre culpado, sentenciava camponês que viera feirar ao mercado.
-- Oiça lá,  sem matarruano, o que é que você percebe de leis?
Rolam já embrulhados pela calçada, ora o citadino por cima, ora o campónio -- e quando um logra montar a cavalo o outro, chega-lhe uns sopapos pouco convencidos.
-- Ninguém os aparta?, pergunta mulher, com vontade de estragar o divertimento da turba.
-- Ora, não se matam. e quem se mete de permeio apanha também.
É o que acaba de acontecer, homenzarrão fiado talvez na corpulência tenta separá-los, ei-lo que rebola também, camisa rasgada na bulha com o citadino, enquanto o campónio, livre do ataque, mete a fralda da camisa nas calças, apanha do chão a boina, incentiva o grandalhão, feliz com a desforra por interposto paladino.
Apita a polícia, separam-se os brigões, ninguém quer questões com a autoridade, não há vencedor nem vencido, ambos se ameaçam ainda, fingem querer atirar-se um ao outro, confiantes em que os braços que os seguram os não largarão e a polícia não permitirá mais desacatos. 
E é junto dos agentes que condutores acidentados e testemunhas argumentam, a um mais exaltado acalma-o aviso ameaçador -- Veja lá se quer ir à esquadra!, fita métrica na mão os polícias medem a rua, a distância às rodas, em bloco de notas esboçam croquis do sinistro, apitam novamente, ordem para dispersar, e as pessoas, obedientes, reentra, nas lojas e cafés, onde prosseguirão as discussões acaloradas, mas agora pacíficas.
Outras vezes é a sirene da ambulância a soar imperiosa, exigindo passagem no caos do trânsito, ainda sem sinais nem rotundas, sobre tamborete no cruzamento sinaleiro impaciente de luvas brancas manda encostar, dar passagem, desimpedir o caminho, e o meu colega Ramalho corre à frente dos demais garotos até ao hospital, a uns centos de metros, a certificar-se de que o sinistrado não não é o pai, vendedor da Carbo Sidral sempre na estrada e amigo de carregar no acelerador.
Nas tardes amenas, após saída da escola e lanche, desço ao centro, detenho-me na contemplação das montras, dos cartazes do cinema, depois sento-me por instantes no jardim, alheado, em sonhos permanentes, saudoso da família, solitário na cidade, antes de passar pelo quiosque onde compramos e vendemos livros usados, Mandrake, Major Alvega, combóis, Os Cinco e os Sete, policiais -- banda desenhada e literatura de cordel. Por vezes,  sentam-se homens no mesmo banco, tentam meter conversa conversa, pedem lume ou oferecem cigarros. Sem sucesso, não fumava, não tinha fósforos, e conversas só comigo mesmo. Papeleiros, saberia mais tarde, mas naquele tempo, com a ingenuidade aldeã dos treze anos, paneleiro era apenas insulto, como ranhoso de merda, cabrão, filha da puta. Perturbado pelas interrupções,  levantava-me, prosseguia as deambulações. Peripatético, diria de mim se então conhecesse a palavra. Andar e pensar, andar e sonhar, como os heróis dos meus romances, a caminharem na ponte dos navios de trás para diante, de diante para trás, enquanto davam caça a piratas ou congeminavam planos de batalha, ou nas calmarias pensavam nas amadas distantes, imaginando-as fiéis, a prepararem o enxoval para casamento quando eles forem promovidos por bravura.
Interrompia o devaneio ao passar junto do stand da Ford, a admirar embasbacado o sonho reluzente de todos os rapazes da cidade, um Ford Capri, modelo desportivo, que me fitava com a soberba expressa nos seus grandes faróis.  Mas, novidade, acima deles há uma placa: VENDIDO. A quem, interrogava-me atónito, quem podia dispor assim de cento e vinte contos? O dono de uma fábrica de plásticos, como aquela onde eu seria operário anos depois -- outra história, já aqui contada. 
Era, aprendia,  o poder indecente do dinheiro, a roubar tudo o que nos encantava, tal como os jogadores de futebol do União nos levavam, logo do portão da escola, as beldades que amávamos platonicamente, e a nós, pobres admiradores mal vestidos, magoados com o olhar de desdém que elas nos deitavam ao entrarem para os carros último modelo dos futebolistas, só restava desabafo amargo: Putas! 

Sem comentários:

Enviar um comentário