quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

A minha mãe e a missa

Aos oitenta anos, a minha mãe perdeu a fé.
Nunca teve muita. Na minha infância, quando o sino chamava imperioso para a missa dominical, desabafava:
— Ora, tenho mais que fazer, Deus há-de perdoar.
Mas obrigava os filhos.
Logo de madrugada, acendia o lume, ia à fonte, preparava-nos o 'almoço', café de cevada com leite em pó aguado e pão com manteiga ou marmelada, aquecia água para os banhos no alguidar, vestia-nos a custo, sem poupar safanões, ralhos, meiguices aldeãs:
— Vê se páras quieto para te albardar!
E eu a choramingar, antecipando a chacota dos outros garotos:
— Não ponho o laço!!
— Pões sim senhor, quem manda sou eu!
Miúdo enraivecido descarrega nos mais pequenos.
— Ó mãe, ele bateu-me!
— Mentirosa, toquei-te sem querer!
Saia bofetada, eu berrava e protestava inocência, a minha mãe, já arrependida da justiça sumária, dava outra na minha irmã para se não ficar a rir, ela gritava como se a estivessem a matar,
— Cala-te!
Nova bofetada.
— Agora choras com razão!
Até que, finalmente, me conseguia pôr à porta: — Já para a missa e portar bem!
Lá ia eu cabisbaixo na roupa domingueira, calções e suspensórios a provocar a chacota da miudagem, laço de elástico que me faria brigar rebolando no pó do adro quando algum malandro o puxasse para me bater violentamente na garganta, emblema do Sporting na lapela, que os matulões iriam querer esborrachar debaixo de uma pedra e só com choro poupariam — por lhes dizer que era do meu pai.
À chegada do Sr. Prior, como chamávamos ao padre, as contendas acabavam instantaneamente, ajoelhávamos no cimento grosseiro da modesta capela da aldeia, à frente raros beatos, depois as mulheres, por último os garotos, sempre na macacada, a distraírem-me na minha devoção, atento às palavras do Sr. Prior a falar-nos do diabo que chegava a entrar na igreja para desencaminhar as almas — tal qual como aqueles diabos, que me beliscavam, obrigando-me a sofrer em silêncio, ou me sussurravam disparates ao ouvido para que risse, e o padre, mesmo em frente, empalidecesse e intimamente jurasse que lhas pagaria se me apanhasse na catequese — ou fizesse queixa à professora, de bendita régua justiceira...
Em casa, a minha mãe, em pecado mortal por faltar ao sacrifício da Santa Missa, por isso condenada aos tormentos do Inferno, assim garantia o padre, momentaneamente aliviada do inferno que era aturar-nos, acudia ao gado, que reclamava no pátio, não os coelhos, silenciosos, mas as galinhas, sempre com fome, os porcos lambões, a burra, impaciente por não sair ao domingo do curral e se espojar no pó da estrada, depois passava a roupa a ferro soprando as brasas para as espevitar enquanto sobre lume de vides e braças de pinheiro cozia o jantar, que o fogareiro a petróleo, fedorento, o bico sempre a entupir, estava reservado para alguma emergência nocturna, como fazer uma água com açúcar, remédio infalível, que outro não havia, para indisposições, indigestões, mal estar geral.
Passaram muitos anos. Enviuvou, passou a ir à missa, que já não é aos domingos por falta de vocações para o sacerdócio, mas de semana e ao anoitecer. Para minha satisfação  egoísta, sempre a querer que tivesse ocupações, caminhadas, ginástica, pintura, renda, pouco me importava, contanto que não estivesse dependente de mim...
Mas faltava frequentemente. Quando vizinha a chamava,
— Maria, vens á missa?
— Hoje não. Fico a fazer companhia ao meu Zé. 
Ou porque estava muito frio, ou lhe doíam as costas, ou "hoje não me apetece"...
Um dia a Morte veio procurá-la. Aneurisma da aorta com derrame pleural. Resistiu-lhe bravamente. Cirurgia de quatro horas in extremis com o coração fora do corpo, no gelo, uma hora. Meses nos Cuidados Intensivos, nos Cuidados Continuados, na Enfermaria...
Rija, arribou. Fraquinha, com complicações pulmonares contraídas em Santa Maria, de bactéria resistente aos antibióticos, a voz sussurrante, quase inaudível, de traqueostomia que correu mal e lesionou as cordas vocais. Incapaz de andar, até de comer. Com alta hospitalar, levei-a para o melhor lar que encontrei.
Voltou a andar, com dificuldade. Fazia a ginástica que podia. Recomeçou a fazer renda. As dores não a largavam, perdeu a vista num olho e o glaucoma ameaçava já o outro.
Na falta de novidades, repetia-lhe as já contadas nas visitas anteriores. Para a ocupar e preencher silêncios, passeávamos a pé, pelos corredores do Lar se chovia, fora se o tempo o permitia.
Apenas as visitas a animavam. Eu, a minha mulher, que a levava quinzenalmente à esteticista, as netas, o bisneto mais velho:

— Hoje veio cá o Afonso...
E eu a pensar que estava a delirar.
— Mãe, ele à tarde está na escola!
— Veio! Veio com a mãe e o irmão, antes de tu chegares! O irmão, como é que se chama, não  me lembro? já anda! Passou o tempo a correr por aí. E com a voz embargada pela emoção: — O Afonso, cada olho! A ver tudo, a querer saber tudo! Como tu eras, em pequeno!
Mas as semanas têm sete dias, os dias vinte e quatro horas.
— Os dias são tão compridos!
— Mãe, tem de se entreter!
— Com quê?
— Tem os trabalhos manuais...
Não lhes via interesse, não apreciava as conversas das companheiras, mais ou menos senis, e sentada naquelas cadeiras doíam-lhe as costas.
— Vens sozinho?
E eu, irritado, a sentir que me recriminava: — Mãe, que quer? As suas netas estão a trabalhar, hão-de vir no fim-de-semana! Domingo venho buscá-la para almoçar connosco! Tem se entreter, tem de se integrar nas actividades...
— Não me interessam!
— Mãe, hoje houve missa. Gostou?
— Fui-me embora, não ligo nada a isso!

Piorou. Deixou de poder sair da sala de convívio quando a freira começava a cerimónia.
— Mãe, hoje assistiu à missa?
— Ora, fingi que estava dormir!
FOTOS: (1) há mais de 40 anos, com a neta mais velha; (2) uma semana antes de morrer, a passear no lar com a outra neta; (3) um lanche no Lar, ao Domingo.

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