quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Um garoto do meu tempo

 Um garoto do meu tempo. Eu mesmo, penetra na minha ficção.

“Porém, o Chico não é o mata-mouros que o pai pinta: a caminho dos onze anos, ainda tem de guerrear quando o enxovalham publicamente, por terem visto a assoalhar lençol e cobertores: — Mijão! Ainda mijas na cama! 

Bem o tenta evitar, mas invariavelmente, sempre rente à madrugada, sonha que está aflitíssimo e então no seu sonho vê parede discreta onde pode escrever a urina o seu nome, começando com um enorme F maiúsculo em caprichado cursivo inglês, ou encontra poço empedrado, largo e fundo, que amplifica e dá corpo ao som do jacto que tomba em curva tensa, ou avista canastra de chicharro que a peixeira pousou durante a venda — e alivia-se com o prazer duplo da partida que prega e do despejo da bexiga, acordando encharcado pela urina quente e, não raro, pelas palmadas da mãe, que inutilmente madruga para evitar a desgraça, mas só chega a tempo de aplicar o correctivo à incontinência matinal...

Tem medo do escuro e frequentemente as histórias de terror que ouviu durante o dia apavoram-no durante a noite; então, inventa desculpas para aparecer a desoras no quarto dos pais, queixando-se, talvez, de dor de barriga. O pai ralhará, não apenas pelo sono estragado, mas porque é bem feito, já lhe disse que o não quer a roubar fruta, quanto mais vir ainda queixar-se dos desarranjos que ela lhe causa...

Ah, mas durante o dia, a sua ousadia não conhece limites: é capaz de trepar ao alto do mais alto dos pinheiros, balançando perigosamente, só para tirar ninho de rola; desce afoito por uma corda ao fundo de um poço fundo, sem receio das sanguessugas que o aguardam, para capturar enguia que lá tenha engordado durante anos; obriga a pobre da burra a cavalgar como uma égua se passa montado pelo Jogo ou se há raparigas a vê-lo; implora a carreiros com quem tem alguma confiança, como o Tio José Emílio, para que o deixem conduzir a junta de bois; salta eufórico do terraço do alambique do José Salgueiro, a uns bons quatro metros de altura, para cima do folhelho da queima, às vezes agarrado a um guarda-chuva ou improvisando uma asa com um saco de serapilheira esticado entre os braços... O Tio Zé Catrino, que foi primeiro sargento no exército, diz-lhe frequentemente, vendo a sua atracção pelas alturas e o gosto com que salta, invejando as aves: — Quando fores à tropa, hás-de ser aviador! Embevecido, o moço escuta interessadamente histórias da sua vida militar, como a do piloto que se despenhou espalhando o seu corpo por uma zona tão grande que para lhe fazerem o funeral foi preciso procurar os pedaços por todo um pinhal.”

Entre Cós e Alpedriz, www.amazon.es

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