terça-feira, 3 de maio de 2022

Da vida e da morte

Pontaria. Em cem biliões de galáxias do universo conhecido, talvez um entre uma infinidade de outros a brotarem como bolhas em pântano, cada uma com pelo menos cem biliões de estrelas, uma infinidade de planetas, saí eu do Nada logo condenado a regressar depressa a esse Nada, como luz que apaga e nada deixa atrás de si, nem sequer simples fotões a viajarem infinitamente no tempo e no espaço...

Comecemos pelo princípio óbvio. Não tivesse eu nascido e nada sofreria. Não me assustaria o medo do vazio que é a morte, essa eternidade sem tempo, sem ontem, hoje, amanhã, sem causa e sem efeito, sem conhecimento nem sofrimento nem prazer. Ou tivesse morrido na infância, como esteve para suceder vezes sem conta, antes de ter consciência de que estava vivo. Hoje, nem uma memória seria, falecidos todos aqueles que me me podiam recordar como pálida tristeza. 

Cheguei a velho. Vi partirem os meus pais, os meus tios, amigos, muitos dos meus conhecidos. Aos poucos, perdi alguma da minha repugnância por doenças, nojo pelos cadáveres. 

Aproxima-se, demore anos ou escassas décadas, a minha hora. Inexorável, inelutável. Vi morrer quem já não queria viver. Creio agora compreender o que sentiam então, essa indiferença que me chocava para com filhos, netos e bisnetos, para com a vida em geral.

A minha mãe. Internado em Santa Maria com aneurisma da aorta roto, retirou a máscara para em grande sofrimento, me dizer: -- Eu não vou morrer! E ano e meio depois, acamada, mãos amarradas para não arrancar os tubos das sondas, abanou a cabeça afirmativamente quando, já sem mais palavras para lhe dizer, lhe perguntei: -- Mãe, quer que me vá embora? 

A minha sogra. Levada ao hospital uma semana antes da morte, onde nada lhe encontraram, pedia que lhe desligassem o pacemaker que a mantinha viva.

Tios que Alzeimer enlouqueceu ao ponto de nem reconhecerem os filhos. Mortos em corpos vivos.

Pelo menos, não sofreram com o avizinhar da morte.

NOTA: não contei as galáxias nem as estrelas, baseio-me em números da ciência, certamente aproximativos, e é também possível que em vez de “biliões “ sejam “milhares de milhões“, sabido que é que o termo inglês “billion” designa um milhar de milhões.

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