quinta-feira, 9 de março de 2023

O prémio

No meu primeiro ano do Curso Comercial, tive, pela primeira vez, aulas de Inglês. A professora, jovem em início de carreira, chegou cheia de ilusões e de boa vontade. Para nos motivar, haveria, portando-nos bem, aulas em que traria gira-discos e ouviríamos música inglesa e, após cada teste, ofereceria um single ao melhor aluno.

Mas a turma era má. Tinha muitos repetentes, alguns já a avizinhar os vinte anos, filhos de gente importante na cidade. E nós, treze, catorze anos, que queríamos aprender a língua dos Beatles, corresponder à simpatia da professora, assistíamos com desgosto e desaprovação interior ao abandalhar as aulas. Depressa se acabou a música e o gira-discos, de nada adiantou tentar, fora das aulas, apelar ao Augusto , o líder do gangue: Eu quero que a professora boazinha se f.! E ai de ti se dizes alguma coisa, cá fora levas no focinho!

Entregou o primeiro teste, então chamado exercício escrito, elogiou o melhor aluno, quis saber que disco queria, e, na aula seguinte, entregou-lho. Eu terei ficado em terceiro ou quarto lugar. A história repetiu-se no teste seguinte. Ainda não tinha chegado a minha vez.

Incapaz de ter mão na gandulagem, a professora passou a apresentar queixa. Não adiantava mandar o Augusto para a rua, porque ele recusava-se a sair. O director da escola incumbiu o director de curso de resolver o conflito.

Esperava eu que ouvisse cada um de nós em privado, e formasse opinião depois. Nada disso. Sem a presença da professora na sala, adoptou a postura de camarada, de compincha: Ora vamos lá a saber o que se passa, a professora apresentou queixa da turma. 

Toma a palavra o Augusto e culpa a professora: Veja o “senhor doutor” que até teve o descaramento de dizer, a turma pode ser testemunha: Eu tenho a faca e o queijo na mão! E eu não me calei: se a stora tem a faca e o queijo, eu tenho o pires!

O director de curso, professor de Contabilidade do terceiro ano, acena em concordância com a cabeça: É o primeiro ano de ensino dela, eu… e contava histórias da sua experiência pessoal comprovando que, ele sim, é que era bom professor. Ficámos nisto até ao toque de saída, o Augusto e os seus apoiantes a elogiarem o director de curso, ali promovido a “senhor doutor” (contabilista não tinha direito ao título, ao contrário da jovem professora, licenciada em letras, a quem o negavam, referindo-se-lhe como “ela”), Fiquem descansados, vou falar com a minha colega para ver se ela tem mais calma.

Aula seguinte, mesmo comportamento, interrupções frequentes, sempre a despropósito, disparates e piadas secas constantes, enquanto, debalde, a professora, sabendo-se desautorizada pela hierarquia, até porque o Augusto não se coibia de lhe dizer que o senhor doutor directos do curso “nos tinha dado razão, tentava, ao menos, “dar a matéria“.

Terceiro teste, último do primeiro período e, finalmente, a melhor nota é a minha. E já sabia que single iria pedir, tinha previamente conversado com os colegas de quarto:

— Vou pedir o What is reading dos Beatles!

Riram muito. Queres dizer, Dock of a Bay, do Otis Redding!

— Pois, é isso!

Mas não pedi.

— Têm-se portado tão mal que não vai haver mais prémios nem confianças. A partir de agora, nem os dentes me vão voltar a ver!

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