O Vasco, via-se à distância, só podia ser um revolucionário: enorme, o mesmo sobretudo escuro de Verão ou de Inverno, boina basca sobre a desgrenhada cabeleira negra encaracolada e sebenta, barba imponente à Fidel de Castro, a tiracolo bornal militar comprado na Feira da Ladra, azedo no falar, quase grunhidos em algarvio cerrado. Inevitavelmente, pelo menos aos olhos dos estudantes, sobre ele recaíam as suspeitas de autoria e distribuição dos panfletos, da colagem dos “selos”, etiquetas autocolantes com palavras de ordem anticoloniais, das pinturas que volta-não-volta decoravam a fachada do Instituto; e ele, agradado com essa imagem, nada fazia para se livrar de suspeitas, antes pelo contrário, sempre que podia distribuía a propaganda associativa, por convicção, talvez também por desejo de brilhar e, eventualmente, vir a ser recrutado.
Tão exposto, parecia um perigo para as organizações clandestinas: um liberal, um pequeno-burguês, demasiado fácil de vigiar pela PIDE, útil, mas sem lugar nos comités clandestinos que se moviam nas sombras. Mas, se eu nada lhe confidenciava que sugerisse o meu envolvimento na luta clandestina, nem lhe dava “tarefas”, acabámos por partilhar um quarto na rua de Arroios durante dois meses.
Longe do Instituto, com as cantinas fechadas uma após outra pela polícia, as minhas despesas aumentaram tanto que nem a comer nas mais baratas das tascas para trabalhadores cabo-verdianos o dinheiro me chegava até ao final do mês — eu era boa boca, comia tudo, mais interessado na quantidade que na qualidade, mas, mesmo assim, a fome, crónica, endémica, atormentava-me. Como os cearenses de Josué de Castro, que tinha lido recentemente, também eu tinha a cabeça cheia de comidas imaginárias… o Vasco, mais abonado, sugeria-me que “tirasse” comida nos supermercados, como ele e outros revolucionários faziam frequentemente; mas não nasci para ladrão, e roubar, mesmo disfarçado eufemisticamente de “expropriação da burguesia” era, para mim, mais intolerável que a fome que me roía nesse final de Maio.
Em desespero, escrevi à minha avó, perguntando se me podia enviar um coelho OU uma galinha. Dois dias depois, para minha surpresa, chegou à camionagem a encomenda, com um coelho E uma galinha! Vim a saber que um primo, ao ler a carta, que a minha avó já não tinha olhos para tal, trocou o “ou” por “e”. A namorada do Vasco cozinhou os bichos e, para se não estragarem, empanturrámo-nos com eles durante uns dias, tirando eu a barriga de misérias até à chegada da próxima carta dos meus pais, emigrantes na Holanda, com a mesada de Junho.
Findo o ano lectivo, separámo-nos. Embora amigos, não me convinha a sua curiosidade: onde foste, de onde vens, vieste tarde na noite passada, onde vais…
Só aí por 76 ou 77, nos voltámos a encontrar. Veio falar comigo a tentar demover-me: eu tinha apresentado pedido de demissão, certo da inevitabilidade de expulsão por “seguir a linha de direita”, como me acusava a miudagem ultra-radical entrada no pós-25 de Abril.
O seu aspecto era o mesmo, mas o ar tenebroso era agora adequado: guarda-costas do Arnaldo Matos. E confidenciou-me: também ele só não tinha ainda mandado tudo isto à merda por causa do “homem dos bigodes“, a quem o ligava profunda lealdade e admiração.
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