sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A Abafadora (5/6)

 O  padre não cede facilmente. Receia que a sua força de vontade ceda, vencida pelas fraquezas que o celibato impõe a homem vigoroso, na meia-idade. Nunca fiando... que a viagem mensal a Lisboa, à civil, se o alivia momentaneamente, mais aguça o desejo nos restantes dias do mês do que o apaga. Sozinho com a Piedade, madura e descomprometida, resguardado de olhares, talvez ambos sentados lado a lado no sofá da sala, se ela se chegasse, derretida, meiga, chorosa como Madalena arrependida, sabia bem que, mesmo que quisesse, o corpo não lhe permitiria recusá-la. E, enquanto ela implora ajuda, lavada em lágrimas pecadoras que acordam sobressaltada parte do corpo que em padre jamais deveria despertar, não consegue impedir-se de a imaginar ajoelhada, encostada a si, a suplicar perdão, penitência, Sr. Padre faço tudo para merecer a sua absolvição... Devia ele, por medo, abdicar do dever sacerdotal de salvar esta alma de outra forma irremediavelmente condenada? Que faria Jesus em seu lugar, Ele que aceitou a tentação extrema durante quarenta dias e quarenta noites na solidão do deserto? Sim, podia ser vencido, era apenas um fraco mortal, mas, acabou por decidir enquanto reprimia o corpo, era seu dever roubar aquela alma a Satanás, talvez fosse essa a razão única da sua chamada ao sacerdócio! 

Anuiu, portanto.

Desfaz-se a Piedade em agradecimentos, que o padre encurta secamente. E ela passa-lhe através das grades bilhete com a morada e telefone, a fazer suspeitar o padre de que já contasse com a cedência.

Inútil contar o que se passou. Padre é homem, homem não é de ferro, sobretudo quando o sacrifício de décadas a viver em quase castidade o atormentam. Diga-se, apenas, que saíu de casa da Piedade completamente aliviado, incomparavelmente mais do que dos fugazes encontros com meninas de Lisboa em quartos rascas de pensões. E tem voltado todas as semanas, fiado na discrição da amante, no anonimato que permite a porta do prédio, com entrada pelo Centro Comercial.

Não tem insistido demasiado para que a Piedade se entregue à polícia. Uns meses a mais não farão grande diferença quando é a Eternidade que está em causa, pensa até que o tempo joga a favor do arrependimento, por isso, mas não só por isso, a amolece nos encontros semanais, deixando-a derretida, melada, cada vez mais receptiva à ideia: Sim Sr. Padre, estou a pensar nisso, dê-me só um tempinho, e também ele quer um tempinho, depois confessar-se-á, por enquanto não está arrependido, não é nenhum Padre Amaro a desencaminhar donzela, a encomendar o parto do filho à “fazedora de anjos”, sabendo que a parteira matava os bebés recém-nascidos, para depois abandonar a Pobre Amélia ao seu destino trágico! Não, é apenas um homem com necessidades, se culpa há, que se procure na Igreja que impõe irracionalmente o celibato, e se Deus desaprovasse que ele se deitasse com mulher facilmente o poderia impedir, por exemplo, privando-o da virilidade no momento crucial, avizinha os cinquenta, não seria milagre difícil, ou fazendo-o encontrar beata conhecida, a impedi-lo de subir as escadas para que ela não desconfiasse. Se Ele nada fez talvez seja porque se não importa, afinal o que se passa na Síria é terrivelmente pior e não o impede, há muito que se conformou com a inescrutabilidade dos desígnios divinos, ou teria já abandonado a fé que o mantém no sacerdócio, talvez aquela mulher matasse por falta de homem que a satisfizesse, sim, ela tinha-lhe confessado que sentia vários orgasmos enquanto abafava cada uma das pobres vítimas indefesas, e ele, embora os não conte, que está ocupado com o prazer de ambos, sabe que consigo ela também os tem nas suas relações em que fazem tudo, incluindo coisas de que só, esporadicamente, tinha ouvido falar no segredo da confissão! Tudo, mesmo!

Mas neste encontro veio preocupado. E quando, logo à porta, a Pilar se lhe agarra ao pescoço, a cobri-lo de beijos lascivos, afasta-a um pouco: Sabes que ontem fiz o funeral da dona Custódia, do teu lar?

Coitadinha, teve morte santa! Tive tanta pena dela! É certo que já tinha muita idade, quase noventa anos! Ninguém deu por nada, foi durante a noite, no sono. E, como se só agora desse pela insinuação implícita: O Sr. Padre não pensa que eu... Não acredito, a deitar-se comigo e a pensar que eu apaguei a velhota! E olhando-o bem no fundo dos olhos: Juro por tudo o que há de mais sagrado! Pela alma da minha mãezinha! Que o Senhor que faça cair um raio na cabeça se eu tive alguma coisa a ver com a morte dela!

O padre tenta apaziguá-la. Sem sucesso. Tão zangada está com a suspeita que lhe não consente o prazer costumeiro. Não, Sr. Padre, perdi a vontade. Não lhe admito que desconfie de mim! O que eu fiz, e foi mal feito, graças a si apercebi-me disso, acabou. Ainda me falta a coragem para me entregar à polícia, estou arrependida, sim, sinceramente, até já pensei dar um tempo para deixar prescrever esses crimes, o meu castigo não precisa de ser na prisão, será suficiente aqui, e bate com a mão no peito, os remorsos não me dão sossego, já só durmo com comprimidos, e quem é que me fez sentir assim, quem foi?

Volto então de hoje a oito, como de costume, espero que estejas mais calma e possamos conversar com calma. 

Volte, sim, Sr. Padre, hoje estou demasiado enervada para essas coisas, o que é que quer, a sua desconfiança ofendeu-me, deixou-me sem vontade. Que eu nunca lhe menti, bem o sabe

Morreu entretanto outra velhota no lar da Piedade. Mas, no encontro seguinte, o padre nem se atreveu a questioná-la. Nem podia, mesmo que quisesse, tal o ardor com que o acolheu, certamente a querer compensá-lo da frieza da recepção anterior. 


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