quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

A Abafadora (4/6)

 E naquele instante, a iluminação desceu sobre aquela pecadora empedernida: Sr. Padre, sozinha, sei que não consigo. Seria pedir demais se o Sr. Padre passasse um destes dias por minha casa, benzê-la, benzer-me a mim, ensinar-me a rezar, que já me esqueci, ajudar-me a vencer o pecado e o Demónio?

O padre recusa. As necessidades da carne são muitas, duras de suportar, aquela quarentona é o Diabo em figura de gente, melhor que não cair em tentação é nem sequer se chegar perto dela: Em tua casa, não, sabes o que são as más-línguas.

O Sr. Padre podia ir à civil…

Embora. Se me vissem a entrar em casa de mulher sozinha, o que não pensariam, o que não diriam? E por medo das bocas do Mundo o Sr. Padre recusa salvar uma alma! A porta do prédio dá também para o Centro Comercial, mesmo que alguém o visse, não desconfiava. 

Não, nem pensar. Vens à igreja, falamos aqui. Mas desde já te previno, é inútil persistires no pecado e quereres que te afaste dele. 

Tem razão, Sr. Padre, fez-me bem falar consigo, abriu-me os olhos, olhe, assim não já apago a dona Custódia. Era para ser na próxima terça-feira. E sim, venho à igreja falar consigo, agora vou-me embora, vou mais leve, sinto até um bem-estar interior. 

Foi o Espírito Santo que te tocou, volta quando quiseres.

E enquanto recupera para a próxima confissão, seguramente velha beata de pecados irrisórios, levanta as mãos e agradece Bendita sejas, minha mãe do céu, que me não deixaste tentar por aquele demónio em figura de gente! Fazei com que ela volte à igreja, para, com a tua ajuda, a poder encaminhar, afastar do Demónio, que, sem dúvida, tomou conta da sua alma!

No domingo, a mulher, Piedade de seu nome, voltou à igreja. Desta vez, para assistir à missa. E reconhecendo-a, o padre rejubilou interiormente: talvez haja ainda salvação possível...

Não falaram. Ele, apressado para oficiar na paróquia vizinha; ela, discreta, a evitar dar nas vistas, a cumprimentar com sorriso modesto as devotas vagamente conhecidas, que a olhavam intrigadas. Duas missas depois já nenhuma estranhava vê-la na igreja. E o padre ansiava por a voltar a confessar: teriam as suas palavras surtido efeito, teria ela deixado a prática criminosa, estaria em processo de arrependimento?

E noutra tarde de chuva, amodorrada, lenta, preguiçosa, com o padre no locutório a disfarçar bocejos enquanto as velhotas desfiavam rosários de pecados, pequenas maldades femininas, má-língua com as vizinhas, ofensas rancorosas à nora, ao genro, patifarias, pequenos furtos até, falhas tão numerosas como as contas dos seus terços, tão anódinos como a crença ingénua na possibilidade de mover a seu favor a vontade de Deus, não com o viver cristão, mas com a repetição infindável de pais-nossos, aves-marias, salve-rainhas em melopeias desprovidas de sentido -- eis que volta a Piedade, a alegrar a tarde do pároco, que via finalmente alguma utilidade no seu trabalho: Não, Sr. Padre, nunca mais... A dona Custódia? Rija, apesar dos noventa! Com um feitiozinho que faz favor! Mas não, irá quando o Senhor a quiser levar, que eu já lhe não mando ninguém desde que o Sr. Padre me repreendeu. É a minha grande amiga, mal me avista, que vê bem apesar da idade, logo me chama para junto dela, é só beijinhos, abraços, meiguices!

O sacerdote regozija, triunfante, depois, resguardado das vistas pelo locutório, arrependido da vaidade, levanta os olhos e as mãos, palmas unidas, murmura agradecimento à boa Mãe do Céu, que se não providenciou este milagre em curso, seguramente o aprova. Afinal, nestas intermináveis tardes de tédio, havia um propósito divino, havia uma ovelha tresmalhada para salvar do fogo do Inferno, e, mais se alegra, vidas em risco que já não são ceifadas prematuramente por mão assassina! Não, não é de todo inútil o seu trabalho!

A Piedade, já sabemos o seu nome, muito pouco para a denunciarmos à polícia, nós que, ao contrário do pároco, o podíamos e devíamos fazer se tivéssemos provas e soubéssemos exactamente quem é, a Piedade dá razão ao confessor, mas lamenta que Deus ainda lhe não tenha dado a força de vontade suficiente para se entregar às autoridades, por isso reitera o pedido: que venha um dia, de manhã, à tarde, quando achar melhor, a sua casa, expulsar demónios, benzê-la, rezar com ela para, juntos, conseguirem a graça divina do verdadeiro arrependimento, do assumir da culpa, da coragem para arcar com as consequências.


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