Por meados da década de oitenta, chegou à minha escola um “agregado”, ou seja, professor já com estágio profissional, a cumprir o ano obrigatório na província.
Calhou-me, no horário, ser director de turma como, aliás, já me tinha sucedido em anos anteriores, e competia-me dirigir a reunião do conselho de turma.
Logo a abrir, esse agregado, professor de Filosofia, ataca-me brusca e abertamente:
— O colega é efectivo?
— Não!
— Então não pode presidir à reunião!
Nunca tolerei que me falassem por cima da burra. Que puxassem de supostos galões para me diminuir.
— Fui nomeado pelo Conselho Directivo. Se não concorda, vá lá entender-se com eles.
Prossegui com a reunião, bem consciente dos olhares escarninhos e murmúrios em apartes do “colega” que, ainda o não sendo, se sentia já “efectivo”, a julgar-se numa dessas escolas em que os efectivos se tratavam entre si por senhor doutor, cultivavam o apartheid segregando os “provisórios”, com quem nem sequer partilhavam as mesas da sala dos professores.
Constava que, nas aulas, a sua postura era igualmente arrogante e prepotente, com completo desprezo pelos alunos, que insultava e ofendia constantemente, e corria a negativas.
E um dia, estava eu na minha hora de atendimento enquanto director de turma…
— Stôr, queremos apresentar queixa do professor de Filosofia!
— Porquê? E comecei a avançar dificuldades, mais por espírito corporativo do que por vontade.
— Chamou-nos “fufas”!
— E daí?
— O stôr sabe o que é isso?
Pois não imaginava. Mas, pela proximidade fonética, seria algo fofo…
— Fufas são lésbicas!
Não sabia. Se tinham a certeza.
— À frente de toda a turma, que pode ser testemunha, disse “Estas fufas aqui…”
Confesso que estava interiormente satisfeito. O sacana que tentara publicamente rebaixar-me, lembrando o meu estatuto profissional inferior e pondo em causa a minha autoridade para dirigir aquela reunião, que quando calhava cruzarmo-nos nos corredores da escola, ou fora dela, nem bom dia nem boa tarde, apenas me deitava um superior olhar desdenhoso que eu fingia não perceber, ali estava, ainda sem o saber, à minha mercê.
E eu a fingir deitar água na fogueira da indignação das miúdas: talvez ele também não conhecesse o significado da palavra, talvez não tivesse sido com intenção…
Elas estavam determinadas. Sabia muito bem o que dizia, era arrogante, prepotente, insultava toda a gente nas aulas… Queriam fazer participação.
A custo, convenci-as a primeiro deixarem-me tentar resolver o conflito. Convoquei uma reunião de conselho de turma — e preparei-me para a guerra, com testemunhos, factos, datas. Dei conhecimento do assunto e ordem de trabalhos à direcção e eis-me, provisório “mini-concursiano” a dirigir a reunião em que se julgavam atitudes e comportamentos do colega agregado que começara o ano a questionar a minha legitimidade para exercer o cargo.
Li a participação das alunas, dei a palavra ao réu. A arrogância habitual, sobretudo perante professores provisórios, evaporara-se. Nem negou que conhecesse o significado de fufa, nem que chamasse outros nomes pouco abonatórios aos alunos.
Os factos eram graves, reconhecia o conselho de turma unanimemente.
Um homem caído sempre me inspirou piedade. E então, maldade suprema, fui magnânimo.
Propus uma saída airosa para o desgraçado. Na acta, registar-se-ia vagamente a matéria discutida, referida como problemas de relacionamento e de linguagem inadequada utilizada pelo professor de Filosofia em momentos de exaltação causados por desinteresse dos alunos pela matéria. Ele ira pedir desculpa às ofendidas na aula e comprometer-se-ia a moderar a linguagem. Antes, reuni com as alunas e persuadi-as com muita dificuldade a aceitar a solução adoptada e a não prosseguirem com a participação recorrendo a instâncias superiores.
O confronto entre ele e a turma foi duro, vim a saber, humilhante, que não lhe perdoavam atitudes e palavras, mas acabaram por fazer umas tréguas inamistosas que resistiram até ao final do ano lectivo, quando ele foi para Coimbra certamente para ser feliz entre iguais e a poder pisar os “inferiores”…
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