terça-feira, 21 de maio de 2024

A minha história da língua

Primeiro surgiram os nomes. Exigiram-nos as coisas, todas diferentes mesmo quando aparentavam ser iguais, as pessoas, as ideias que se iam formando. Depois, os verbos. Afinal, o Homem ou ESTAVA ou FAZIA. Bicho irrequieto, tudo eram estados ou acções: bebé dorme, chefe caça. Podia construir frases: Chefe caça urso; urso caça chefe. 

Animal complicado, precisava de distinguir coisas, seres da mesma espécie pelos pormenores. Inventou os adjectivos e estragou a linguagem. Grande chefe caça urso pardo coxo; rapaz zarolho ama rapariga linda... 

O mais, declinações e conjunções, artigos e preposições, advérbios e interjeições veio por acréscimo, como vieram tempo e modo e aspecto. A língua complicou-se de tal forma que deixou de depender da realidade. Passou a construí-la. As palavras, que antes reportavam o mundo, tornaram-se barreira à sua compreensão, deturpando, mistificando. De tal forma que a ciência, quando foi inventada, mais do que as palavras, recorreu aos números, mais do que à linguagem recorreu à matemática, desconfiada dos artifícios retóricos construídos com palavras, os quais permitem defender uma ideia e a sua contrária. 

Pior. Se no início dos tempos, quando o chefe falava, o ouviam em silêncio religioso, não raro de costas, hoje, com o falajar constante e vazio, a palavra perdeu a sua antiga magia.

Chefe manda caçar urso.

Porquê urso e não bisonte? 

Que mal lhe fez o urso?

Ele quer é a pele para a mulher!

Urso é perigoso. Prefiro caçar coelhos.

Caçar está errado. Não se deve fazer mal aos animais.

Nem os nomes escaparam à banalização. Amigo é quem pede amizade no Facebook. Casa, algo que pertence ao banco. Amor, um vocativo a substituir o nome próprio:

— Amor, vai despejar o lixo!

Ou mera palavra melada que como a serpente adorável carrega em si o veneno da mentira,

— Amor, chego tarde, tenho uma reunião que vai demorar...Sim, conselho de turma, acaba tarde, está lá o Fulano, já te falei desse chato, nunca se cala, toda a gente a querer sair e ele a exigir que cada peido que dá fique em acta...

Ou desculpa para a violência doméstica, quando por ela se perdoam os maus-tratos de hoje, os mesmos que se sofrerão amanhã,

— É porque te amo!

e até desculpa  em tribunal os desfalques,

— A ré está absolvida, pode ir em paz...

  — Sr. Dr. Juiz, e os duzentos mil euros da autarquia?

Pois podem dizer-lhes adeus, afinal eram dinheiros públicos e a escrivã privatizou-os por amor, para oferecer carro topo-de-gama ao namorado que ameaçava deixá-la!


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