Era casinha modesta da CP, em
bairro ferroviário, divisões minúsculas, quintalzinho dividido por curto
passeio de cimento até à capoeira e barracas, pequeno alpendre encostado à
casa, sob o qual, aos domingos, almoçávamos em mesa tosca de madeira,
resguardados do Sol no Verão, aconchegados por ele no Inverno, quando penetrava
baixo, pouco acima dos muros caiados.
Era exigência da minha sogra ter
a família reunida para o almoço dominical, a que não seria alheia a consciência
das necessidades que todos nós passávamos -- raro era o mês em que não
precisávamos de lhe pedir pequeno empréstimo, coisa de uns centos de escudos,
pago logo que recebíamos o ordenado.
O meu sogro, rijo assentador, alto,
seco, de força invulgar, rabugento por natureza, conformava-se com a vontade da
mulher, sacrificava-se pelas filhas -- mas os genros? Franzinos, fracotes, sem apetência
para a enxada de bicos, nem jeito algum para granjeios de hortelão -- um
desgosto que o deve ter perseguido até ao final da vida, aos 85 anos. Ah, como
deve ter lamentado que nenhuma das filhas lhe tivesse dado genro à maneira, um
desses homenzarrões de força, capazes de assentar travessas na via sob
estiagens e invernias, disposto a acamaradar com ele ao despegar do emprego para
uns copos na taberna do Pescador, famoso pelo peixe frito, antes de ir amanhar
até à noite a horta emprestada!
Nós três, com o apetite dos vinte
e poucos anos, fazíamos orelhas moucas a remoques, deliciados com a comida da nossa
sogra, cozinheira exímia: caldo verde ou sopa de feijão, frango assado, ou
coelho frito ou guisado com ervilhas, feijoada, empadão... Quase tudo da casa,
quase tudo cozinhado no fogão a lenha alimentado com madeira de velhas
travessas do caminho de ferro, rachadas pelo meu sogro com a bita do serviço.
E tanto como a boa comida,
apreciava eu o convívio alegre, por vezes povoado por pequenas quezílias, que
nunca deram azo a animosidades sérias e duradouras como as da minha aldeia,
onde frequentemente as famílias, pais e filhos até, se não falavam, zangados em
disputa por palmo de terra nas partilhas, ou por águas, ou por direitos de
serventia, quase sempre por mesquinhez, invejas, má língua.
A família cresceu e
multiplicou-se. A velhice roubou à minha sogra as forças necessárias para
preparar os almoços de domingo, que começavam na véspera, a matar e amanhar os
galos ou os coelhos, a acender alta madrugada o fogão de ferro -- e é possível
que a algazarra de tanta gente junta a incomodasse já, ou os protestos do meu
sogro, excelente homem, mas sempre rude e áspero, a tivessem finalmente
descorçoado.
Há muito tinham deixado o 35,
desde então ao abandono. Dele ficaram-nos as memórias, dele fica-nos a tristeza
ao vê-lo desabitado, ao abandono, degradado – nem CP o voltou a alugar, nem ferroviário
algum aceitaria nos dias de hoje viver em casinha tão modesta, tão pequena, tão
sem comodidades. E ficam as saudades desse espaço e desse tempo em que, fazendo
minhas as palavras da minha sobrinha, autora da foto, “eu fui tão feliz.”,
FOTOS: (1) entrada, foto da
Catarina; (3) pombo observa atento a minha mulher a arranjar alface; (2) neste almoço,
lombo assado, seguramente bem melhor do que aquele que servem a Jerónimo de
Sousa nas campanhas eleitorais.
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