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domingo, 25 de abril de 2021

Jumento, asno, burro

 Aí por 1962 ou 1963, o meu tio Emílio construiu uma guitarra: uma lata de atum redonda, cordas, o resto em madeira. Uma obra de artista, como ele era com as mãos, e eu acompanhava embevecido a construção e os testes, quando ele, que não saberia muito mais de música do que eu, ou seja, nada, a afinava. Pensava eu que ele iria começar uma carreira de músico amador, aprendendo a tocar o instrumento e, talvez, formando conjunto musical, Jazz, dizíamos então, à semelhança do lendário jazz da terra, Os Gaiatos, que animou as festas meio século atrás.

Estava enganado. A bela guitarra, finamente trabalhada, tinha outro propósito, como descobri no dia de Entrudo, ao vê-lo mascarado, cabeça tapada como os Entrudos usavam para que os não reconhecessem, montar a burra, numa mão a arreata, na outra, em vez do bordão carnavalesco, a guitarra. E juntou-se a bando de rapazes, todos a cavalo em burros e burras, desfilando pela estrada principal, tangendo violentamente as cordas do instrumento supostamente musical.

Para nós, a garotada da terra, que corríamos eufóricos atrás da cavalaria fandanga, aquele era o melhor dos entrudos, e para aumentar a animação, tentávamos espantar os burros, enquanto os cavaleiros, agarrando-se às albardas para não tombarem, nos tentavam atingir com os varapaus, e nós gritávamos, e esbracejávamos, a evitar os ataques, a tentar fazê-los cair.

Nas bermas, o povo ria e tentava identificar os vultos encapuçados, a partir dos animais que montavam, mas alguns, prevendo-o, tinham trocado entre si de animais.

Já a festa cansava quando se aproximaram da Associação Recreativa, que funcionava então na adega do dr. Amílcar. Dentro, tinha sido organizado Carnaval reservado a sócios, com artista, talvez da rádio, a que chamávamos então telefonia. E o meu tio, reconheci-o pela burra e pela guitarra, guiou afoito a montada para a porta, tentando forçar a entrada.

Não vi a confusão interior, mas ouvi, pelo microfone, o artista a vociferar: Aquele é ainda mais jumento que o asno que monta!

Palavras novas, que nunca mais esqueci, para animal a que sempre chamei burro. Pouco depois, os entrudos dispersaram, talvez a vestirem-se para a festa da Associação, que não haveriam de querer perder. Ainda fiquei nas imediações, a ouvir as cantorias que escoavam pela porta, mas escurecia, e as ordens severas do meu pai eram terminantes: As galinhas no poleiro, e tu em casa! , pelo que corri a tentar chegar antes dele, livrando-me de umas cinturadas pelo atraso...