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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Contagem de protecção

Sempre me indigna ver muitos a agredirem a um só, demais a mais caído -- espancado talvez pelos mesmos que tanto o bajularam quando estava de pé, poderoso e arrogante. 
Contem até dez, deixem-no recuperar a dignidade, esmaguem-no no próximo round se forem capazes e entenderem que merece a surra. Com lealdade, de instituição para homem, não assim, não agora, neste vale-tudo ignóbil.

domingo, 23 de novembro de 2014

Do lodo e da lama


Não partilho a alegria que parece ter tomado conta deste país pela prisão, certamente temporária, do antigo primeiro-ministro. Nem me coloco do lado daqueles que inventam justificações para apresentarem a detenção como resultado da perseguição dos seus inimigos. 

José Sócrates, o engenheiro dominical, irritou-me enquanto governante com a sua arrogância e, sobretudo nos anos finais do seu governo, com a sua cegueira obstinada que conduziu o país à perda da pouca soberania que lhe restava após a adesão à União Europeia e ao Euro. Não foi pouco. Mas foi eleito com o voto livre do povo, da primeira vez também com o meu, pelo que então dei por mim a repetir frequentemente "T'as voulu, t'as eu, de quoi te plains-tu?" (quiseste, tiveste, de que te queixas?), dito que a sua forte conotação sexual tornava ainda mais apropriado. 
Foi corrido em eleições livres. Adiante. Não me movem desejos mesquinhos de vingança. Se é culpado, que se faça prova em tribunal, que seja sentenciado com a justiça possível pela senhora dos olhos vendados. Que os devia desvendar mais vezes, para, ao errar, não ter a desculpa de não ver o que faz.
Pois eu, retirado na aldeia por uns dias, quase sem ver televisão, com acesso limitado à internet, ocupado de manhã à noite, nem sofri com o circo mediático, o mesmo que tanto favoreceu Sócrates nos seus tempos de governante, quando tratava por tu os chefes de redacção e não se coibia de lhes telefonar a pressioná-los. Não. O que me incomodou deveras foi o ataque massivo de mosquitos e moscardos que me deixaram num triste estado, apesar do repelente com que me cobri, ao teimar arrancar as batas-doces já afogadas em lamaçal e sob a chuva que não cessou de cair. 
FOTOS: (1) o meu fiel amigo, o Tex, sempre pronto a saltar para a caixa do tractor e a acompanhar-me nas idas ao campo; 
(2) a batata-doce, coberta de lama.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Como comprei Paroles, de Prévert

Todas as manhãs, a caminho da faculdade -- o metro acabava então em Entrecampos --, a fazer tempo para a primeira aula, Latim, detinha-me em frente a montra a namorar livro por que me apaixonara. Não, nem pensar na extravagância de gastar com ele os escassos tostões, sempre bem contados, indispensáveis para as fotocópias e raros livros que não podia deixar de comprar. Estava em ano de azar, de dia estudante, a levantar pelas cinco da manhã, apanhar ronceiro comboio regional e passar o dia na faculdade, à tardinha caminho inverso, para trabalhar até à meia-noite, comer apressadamente e dormir o possível. O mais, estudava no comboio, dormia no comboio, corrigia os testes no comboio. Ao meu lado, trabalhadores ferroviários, mais ou menos da minha idade, ocupavam as viagens entre jogos de cartas e larachas. E eu, que sempre detestei madrugar, consolava-me: para mim, são só mais três anos. Para estes será a vida inteira...
No ano anterior, a vida pregara-me partida: por não ter assinalado com cruz quadrado no boletim de concurso, tinha sido excluído e passado a "mini-concursiano", com contrato e salário a terminar no fim de Julho para só voltar a receber bem depois de lá para Novembro recomeçar a actividade lectiva. E a minha mulher perdeu primeiro a habilitação própria de que dispunha, por alteração legislativa, e logo a seguir o emprego. Não havia então subsídio de desemprego para professores...

Foi o tempo em que voltei a comer esparguete. Pela primeira vez depois da tropa, onde aprendi a abominá-lo. Foi o tempo em que esperei pelo subsídio de natal, que recebia por duodécimos correspondentes aos meses em que trabalhara no ano anterior, para comprar roupa para a nossa filha -- então era só uma --, uns sapatos para mim, que os únicos que tinha, solas esburacadas, metiam água quando chovia. E o primeiro-ministro, Mario Soares de seu nome, entendeu mandar pagá-lo --com corte de um terço! 

Certamente contristado ao olhar para os meus sapatos, a abrirem a boca, colega mais velho, a quem por isso mesmo continuo grato, arranjou-me explicações, que dava aos sábados à tarde. Sobrevivemos com parcimónia que hoje provocaria sorrisos de escárnio. E sempre pagámos pontualmente renda de casa, pequenas dívidas contraídas junto da família. 

Pois lá para finais do ano lectivo, um poucochinho mais desafogados, que a minha mulher arranjara emprego, pude entrar na livraria e comprar o tal livro.

Com que prazer o li na viagem de regresso, à noite nos intervalos das aulas, depois vezes sem conta pela vida fora! Ainda hoje permanece vivo o carinho por esse Livre de Poche, de seu título Paroles, de Jacques Prévert, Dele aqui fica o belíssimo poema em que dois caracóis vão ao enterro de uma folha morta, seguido de paráfrase para eventuais leitores mais jovens, que porventura não dominem o Francês.



CHANSON DES ESCARGOTS QUI VONT À L'ENTERREMENT
"A l'enterrement d'une feuille morte
Deux escargots s'en vont 
Ils ont la coquille noire 
Du crêpe autour des cornes 
Ils s'en vont dans le soir 
Un très beau soir d'automne
Hélas quand ils arrivent
C'est déjà le printemps 
Les feuilles qui étaient mortes
Sont toutes réssucitées 
Et les deux escargots 
Sont très désappointés 
Mais voila le soleil 
Le soleil qui leur dit 
Prenez prenez la peine 
La peine de vous asseoir 
Prenez un verre de bière
Si le coeur vous en dit 
Prenez si ça vous plaît 
L'autocar pour Paris 
Il partira ce soir 
Vous verrez du pays 
Mais ne prenez pas le deuil
C'est moi qui vous le dit
Ça noircit le blanc de l'oeil
Et puis ça enlaidit 
Les histoires de cercueils 
C'est triste et pas joli 
Reprenez vous couleurs 
Les couleurs de la vie 
Alors toutes les bêtes 
Les arbres et les plantes 
Se mettent a chanter 
A chanter a tue-tête 
La vrai chanson vivante 
La chanson de l'été 
Et tout le monde de boire 
Tout le monde de trinquer 
C'est un très joli soir 
Un joli soir d'été 
Et les deux escargots 
S'en retournent chez eux 
Ils s'en vont très émus 
Ils s'en vont très heureux 
Comme ils ont beaucoup bu 
Ils titubent un p'tit peu 
Mais là-haut dans le ciel 
La lune veille sur eux" 



Jacques Prévert, Paroles

(Dois caracóis vão, carregados de luto, ao enterro de uma folha morta, numa noite de Outono; quando chegam, é já Primavera, as folhas mortas ressuscitaram, e os caracóis ficam desapontados; Mas o Sol convida-os a sentarem-se, a beberem um copo de cerveja (si le coeur vous en dit), as histórias de caixões são tristes e nada bonitas. Então todos os animais, as árvores e as plantas se põem a cantar a plenos pulmões a verdadeira canção dos seres vivos, a canção do Verão. E toda a gente a beber, e toda a gente a emborcar, é uma bela tarde de Verão. E os dois caracóis regressam a casa, comovidos, muito felizes. Como beberam bastante, vacilam um pouco, mas lá no alto do céu a Lua olha por eles.)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Coisas do demiurgo

De chofre, a minha sogra, 84 anos lúcidos, pergunta-me ao jantar: se acredito que que o nosso destino está escrito em livro, ou se somos nós que o fazemos.
Encolho os ombros: não sei. Não tenho a sabedoria de Santo Agostinho, e não me apetece reflectir por entre colheradas de sopa sobre determinismo e livre-arbítrio. Já a minha sogra se alonga, indiferente à resposta: arrepende-se de muitas asneiras, como a de num passado já longínquo ter deixado a casa em que vivia para ir para a de uma das filhas. Não me pronuncio. Parece não haver maneira de recuar ao passado a emendar os erros -- tantos que eu gostaria de poder corrigir! Só nos resta conviver com eles, por dolorosa que seja a recordação. E não repetir aqueles que se possam evitar.
Mas a questão inicial subjaz: determinismo ou livre-arbítrio? Como explicar-lhe que há o ADN, que há a sociedade, a educação, a avaliação correcta das situações em que a vida nos coloca, sempre difícil quer por insuficiência de informação, quer porque tendemos a decidir com o coração e não com a cabeça, e esta, frequentemente, tem por função encontrar justificações para as escolhas do coração... Não sei se a vida nos deixa muita margem de escolha.
Porém, admitir que a nossa vida está, foi, previamente escrita, no sentido em que as nossas escolhas estão quase sempre condicionadas, faz-me pensar que é da autoria de mau escritor -- afinal, a velha concepção platónica segundo a qual este mundo grosseiro, desconcertado, imperfeito, foi obra do demiurgo, um deus trapalhão, incapaz de reproduzir materialmente a perfeição das abstracções.
Não era nada disto que a minha sogra queria saber com tal questão, longamente meditada. A pergunta foi artifício retórico para iniciar o desabafo que se seguiu. Com as pessoas erradas. Que fazem o que podem para ajudar a resolver o seu problema a seu contento, nada fácil quando se esbarra com uma parede de certezas, indiferente aos sentimentos, aos pensamentos dos outros intervenientes -- outra evidência  de que afinal não podemos escolher o nosso destino.

sábado, 1 de novembro de 2014

Escrever é suspeito

As noites alongavam-se intermináveis, eu esperava no café das bombas de gasolina que amanhecesse para apanhar o primeiro autocarro, voltar a casa, dormir, dormir. Aquele purgatório repetia-se sempre que estava no turno das quatro à meia-noite.
A princípio, percorria a cidade adormecida a pé, dos Parceiros aos Marrazes, à estação; experimentei deitar-me no mato, escondido dos olhares, e tentei dormir. Mas o frio que remanescia da terra penetrava cortante pelo capote, pelas camisolas, pela carne, chegava aos ossos, e pouco tempo depois lá voltava eu ao café, o único que estava aberto durante toda a noite. Uma bica, um rissol, a um canto ocupava o tempo a escrever. Panfletos que depois haveria talvez de bater à máquina, imprimir na maquineta, esse copiador artesanal, e pela calada na noite deixar debaixo de automóveis estacionados, uma pedrinha em cima, para que só fossem descobertos muito depois de eu por lá ter passado. Ou poemas – textos empolgados, abundantemente adjectivados, recheados de metáforas e imagens, que há muito destrui. Assim ocupava a solidão dessas noites.
Aí pelas três, quatro da madrugada, quando cabeceava com sono, chegavam em vários carros sete ou oito clientes, sempre os mesmos. Com histórias de grandeza imaginária, à portuguesa, a impressionar ouvintes, mas sobretudo com fados. Ali ficávamos, o dono do café atrás do balcão, eu a escrevinhar, os fadistas a animarem a noite. Tinham jeito. Tinham garra. E desconfiavam de mim, naquele tempo em que todos desconfiávamos uns dos outros: que fazia eu ali àquelas horas, quando todos os outros dormiam? Nunca mo perguntaram. Mas pressentia a desconfiança nos seus olhares.
Até que um dia, já depois do 25 de Abril, um dos calmeirões se me dirigiu, como se falasse para o grupo: quem era aquele gajo, sempre a ouvir e tirar notas?

Ah, não! Tudo podia ser – menos bufo. E puxei dos galões. Era dirigente da Comissão de Trabalhadores, do Comité Operário dos Plásticos, este clandestino. Dei-lhes a ler o que escrevia, algum apelo aos camaradas operários para que se levantassem contra a exploração capitalista. Calei-os. Mas creio que ainda hoje, quarenta anos depois, ainda há quem me olhe com desconfiança nos cafés onde escrevo…