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terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Um Natal inesquecível

Com os meus desejos de que todos, amigos e menos amigos, conhecidos e desconhecidos, tenham o melhor Natal que lhes for possível, aqui vai historieta apressada a recordar um Natal especial para mim.
" O Natal trazia invariavelmente o desapontamento: em vez de brinquedos, o Menino Jesus apenas me deixava peúgas num dos sapatinhos; no outro,  filhós desenxabidas. 
Ah, mas este ano seria diferente, bem o anunciara o sr. prior na missa de domingo, bem o confirmara a catequista: uma viúva rica da terra, contemplada com quinhentos contos de reis na lotaria, faria depois da missa uma distribuição de brinquedos às crianças pobres.
Com que euforia corremos da igreja até à casa da viúva, na ânsia de, chegando primeiro, conseguir os melhores brinquedos. Ei-los em prateleira, bem defendida por barreira de beatas: automóveis de plástico, cavalinhos de madeira, belas bolas de futebol, a imitar as de cauchu, "tátechumbo", como lhes chamávamos.
— Têm de esperar pelo sr. prior! 
Que nisto do dar, faz falta a pompa, o cerimonial, a pregação da moral, os bons conselhos.
Os meus colegas de escola e de rua, imbuídos do espírito natalício, empurravam, deitavam olhares ferozes aos outros, ameaçavam, preveniam: — Aquele carro é para mim! 
— A bola é minha!
A custo, o mulherio impedia a pilhagem. E quando o sr. prior, entretanto chegado, deu por terminada a prelecção, que nenhum de nós ouviu, hipnotizados pelos brinquedos já escolhidos, diz a viúva, milionária por graça divina:
— Agora, meninos, com compostura, cada um vai tirar um brinquedo da prateleira!
Foi um assalto. Uns empurraram as mulheres, outros furaram-lhes por entre as pernas, logo deitaram a mão ao que puderam, e abalaram em correrias triunfantes levantando o troféu conquistado.
Também eu avancei — mas a prateleira estava já vazia. 
Saía a chorar,
— Que tens, meu menino? Não gostaste da nossa festa?
E eu, a fungar: — Já não há brinquedos para mim...
— Então toma este, e a viúva estendeu-me casinha que, caída por terra, tinha escapado ao assalto infantil. Brinquedo de menina, do tamanho da cabeça do meu dedo mindinho, de consolo nulo para a criança que acabava de perder automóveis e bolas e via arruinado o sonho de que, finalmente,  o Menino Jesus, lhe desse brinquedo, por interposta pessoa que fosse... "

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Custos repartidos

O velhote pedia ao bombeiro -- Precisava que vocês me viessem cortar a nogueira...
-- Isso arranja-se...
-- Mas olha que as nozes são para os meus netos! E a lenha fica para a minha família... Mas deixa lá, e sorriu malandro, o trabalho fica para os pretos!
O bombeiro mudou de cor. Ao chico-esperto só conseguiu responder: -- Bom, mas há custos...
-- Custos? Que custos? Vocês têm as escadas, as serras...
E o bombeiro, a desviar a conversa: -- Porque é que vossemecê quer cortar a árvore?
-- Toda as manhãs, quando abro a porta da cozinha, vejo-a à frente!
-- Sorte a sua, eu, de manhã, quando abro a porta da cozinha, vejo logo a minha sogra...
-- Bom, mas cortam a nogueira, não é?
-- Já lhe disse, há custos... Tem de falar com o comandante.
-- Assim, corto-a eu! E não tenho custos.
Pois teve, mas os custos foram repartidos: ao avarento, a proeza custou a vida; aos bombeiros, retirar-lhe o corpo, caído na estrada.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Português Técnico

"Em ata, o júri justificou a atribuição do galardão a XXXXXXX, pela "escrita ágil de um autor que sabe realizar uma especial economia de efeitos, encontrando uma linguagem em que o português é falado em interceção com outros modos".
Quanto ao romance "YYYYYYYY" o júri salientou "a abordagem etnográfica a que o romance procede, pouco presente no panorama da atual ficção portuguesa, expressa numa narrativa bem conduzida, cuja frase é, no geral, vertebrada, sendo sentimentalmente envolvente e suscetível de atravessar diversos patamares de leitura"."
Parafraseando Calisto Elói, o que significam em vernáculo estas tretas vertebradas em intercepção com outros modos?

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Contagem de protecção

Sempre me indigna ver muitos a agredirem a um só, demais a mais caído -- espancado talvez pelos mesmos que tanto o bajularam quando estava de pé, poderoso e arrogante. 
Contem até dez, deixem-no recuperar a dignidade, esmaguem-no no próximo round se forem capazes e entenderem que merece a surra. Com lealdade, de instituição para homem, não assim, não agora, neste vale-tudo ignóbil.

domingo, 23 de novembro de 2014

Do lodo e da lama


Não partilho a alegria que parece ter tomado conta deste país pela prisão, certamente temporária, do antigo primeiro-ministro. Nem me coloco do lado daqueles que inventam justificações para apresentarem a detenção como resultado da perseguição dos seus inimigos. 

José Sócrates, o engenheiro dominical, irritou-me enquanto governante com a sua arrogância e, sobretudo nos anos finais do seu governo, com a sua cegueira obstinada que conduziu o país à perda da pouca soberania que lhe restava após a adesão à União Europeia e ao Euro. Não foi pouco. Mas foi eleito com o voto livre do povo, da primeira vez também com o meu, pelo que então dei por mim a repetir frequentemente "T'as voulu, t'as eu, de quoi te plains-tu?" (quiseste, tiveste, de que te queixas?), dito que a sua forte conotação sexual tornava ainda mais apropriado. 
Foi corrido em eleições livres. Adiante. Não me movem desejos mesquinhos de vingança. Se é culpado, que se faça prova em tribunal, que seja sentenciado com a justiça possível pela senhora dos olhos vendados. Que os devia desvendar mais vezes, para, ao errar, não ter a desculpa de não ver o que faz.
Pois eu, retirado na aldeia por uns dias, quase sem ver televisão, com acesso limitado à internet, ocupado de manhã à noite, nem sofri com o circo mediático, o mesmo que tanto favoreceu Sócrates nos seus tempos de governante, quando tratava por tu os chefes de redacção e não se coibia de lhes telefonar a pressioná-los. Não. O que me incomodou deveras foi o ataque massivo de mosquitos e moscardos que me deixaram num triste estado, apesar do repelente com que me cobri, ao teimar arrancar as batas-doces já afogadas em lamaçal e sob a chuva que não cessou de cair. 
FOTOS: (1) o meu fiel amigo, o Tex, sempre pronto a saltar para a caixa do tractor e a acompanhar-me nas idas ao campo; 
(2) a batata-doce, coberta de lama.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Como comprei Paroles, de Prévert

Todas as manhãs, a caminho da faculdade -- o metro acabava então em Entrecampos --, a fazer tempo para a primeira aula, Latim, detinha-me em frente a montra a namorar livro por que me apaixonara. Não, nem pensar na extravagância de gastar com ele os escassos tostões, sempre bem contados, indispensáveis para as fotocópias e raros livros que não podia deixar de comprar. Estava em ano de azar, de dia estudante, a levantar pelas cinco da manhã, apanhar ronceiro comboio regional e passar o dia na faculdade, à tardinha caminho inverso, para trabalhar até à meia-noite, comer apressadamente e dormir o possível. O mais, estudava no comboio, dormia no comboio, corrigia os testes no comboio. Ao meu lado, trabalhadores ferroviários, mais ou menos da minha idade, ocupavam as viagens entre jogos de cartas e larachas. E eu, que sempre detestei madrugar, consolava-me: para mim, são só mais três anos. Para estes será a vida inteira...
No ano anterior, a vida pregara-me partida: por não ter assinalado com cruz quadrado no boletim de concurso, tinha sido excluído e passado a "mini-concursiano", com contrato e salário a terminar no fim de Julho para só voltar a receber bem depois de lá para Novembro recomeçar a actividade lectiva. E a minha mulher perdeu primeiro a habilitação própria de que dispunha, por alteração legislativa, e logo a seguir o emprego. Não havia então subsídio de desemprego para professores...

Foi o tempo em que voltei a comer esparguete. Pela primeira vez depois da tropa, onde aprendi a abominá-lo. Foi o tempo em que esperei pelo subsídio de natal, que recebia por duodécimos correspondentes aos meses em que trabalhara no ano anterior, para comprar roupa para a nossa filha -- então era só uma --, uns sapatos para mim, que os únicos que tinha, solas esburacadas, metiam água quando chovia. E o primeiro-ministro, Mario Soares de seu nome, entendeu mandar pagá-lo --com corte de um terço! 

Certamente contristado ao olhar para os meus sapatos, a abrirem a boca, colega mais velho, a quem por isso mesmo continuo grato, arranjou-me explicações, que dava aos sábados à tarde. Sobrevivemos com parcimónia que hoje provocaria sorrisos de escárnio. E sempre pagámos pontualmente renda de casa, pequenas dívidas contraídas junto da família. 

Pois lá para finais do ano lectivo, um poucochinho mais desafogados, que a minha mulher arranjara emprego, pude entrar na livraria e comprar o tal livro.

Com que prazer o li na viagem de regresso, à noite nos intervalos das aulas, depois vezes sem conta pela vida fora! Ainda hoje permanece vivo o carinho por esse Livre de Poche, de seu título Paroles, de Jacques Prévert, Dele aqui fica o belíssimo poema em que dois caracóis vão ao enterro de uma folha morta, seguido de paráfrase para eventuais leitores mais jovens, que porventura não dominem o Francês.



CHANSON DES ESCARGOTS QUI VONT À L'ENTERREMENT
"A l'enterrement d'une feuille morte
Deux escargots s'en vont 
Ils ont la coquille noire 
Du crêpe autour des cornes 
Ils s'en vont dans le soir 
Un très beau soir d'automne
Hélas quand ils arrivent
C'est déjà le printemps 
Les feuilles qui étaient mortes
Sont toutes réssucitées 
Et les deux escargots 
Sont très désappointés 
Mais voila le soleil 
Le soleil qui leur dit 
Prenez prenez la peine 
La peine de vous asseoir 
Prenez un verre de bière
Si le coeur vous en dit 
Prenez si ça vous plaît 
L'autocar pour Paris 
Il partira ce soir 
Vous verrez du pays 
Mais ne prenez pas le deuil
C'est moi qui vous le dit
Ça noircit le blanc de l'oeil
Et puis ça enlaidit 
Les histoires de cercueils 
C'est triste et pas joli 
Reprenez vous couleurs 
Les couleurs de la vie 
Alors toutes les bêtes 
Les arbres et les plantes 
Se mettent a chanter 
A chanter a tue-tête 
La vrai chanson vivante 
La chanson de l'été 
Et tout le monde de boire 
Tout le monde de trinquer 
C'est un très joli soir 
Un joli soir d'été 
Et les deux escargots 
S'en retournent chez eux 
Ils s'en vont très émus 
Ils s'en vont très heureux 
Comme ils ont beaucoup bu 
Ils titubent un p'tit peu 
Mais là-haut dans le ciel 
La lune veille sur eux" 



Jacques Prévert, Paroles

(Dois caracóis vão, carregados de luto, ao enterro de uma folha morta, numa noite de Outono; quando chegam, é já Primavera, as folhas mortas ressuscitaram, e os caracóis ficam desapontados; Mas o Sol convida-os a sentarem-se, a beberem um copo de cerveja (si le coeur vous en dit), as histórias de caixões são tristes e nada bonitas. Então todos os animais, as árvores e as plantas se põem a cantar a plenos pulmões a verdadeira canção dos seres vivos, a canção do Verão. E toda a gente a beber, e toda a gente a emborcar, é uma bela tarde de Verão. E os dois caracóis regressam a casa, comovidos, muito felizes. Como beberam bastante, vacilam um pouco, mas lá no alto do céu a Lua olha por eles.)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Coisas do demiurgo

De chofre, a minha sogra, 84 anos lúcidos, pergunta-me ao jantar: se acredito que que o nosso destino está escrito em livro, ou se somos nós que o fazemos.
Encolho os ombros: não sei. Não tenho a sabedoria de Santo Agostinho, e não me apetece reflectir por entre colheradas de sopa sobre determinismo e livre-arbítrio. Já a minha sogra se alonga, indiferente à resposta: arrepende-se de muitas asneiras, como a de num passado já longínquo ter deixado a casa em que vivia para ir para a de uma das filhas. Não me pronuncio. Parece não haver maneira de recuar ao passado a emendar os erros -- tantos que eu gostaria de poder corrigir! Só nos resta conviver com eles, por dolorosa que seja a recordação. E não repetir aqueles que se possam evitar.
Mas a questão inicial subjaz: determinismo ou livre-arbítrio? Como explicar-lhe que há o ADN, que há a sociedade, a educação, a avaliação correcta das situações em que a vida nos coloca, sempre difícil quer por insuficiência de informação, quer porque tendemos a decidir com o coração e não com a cabeça, e esta, frequentemente, tem por função encontrar justificações para as escolhas do coração... Não sei se a vida nos deixa muita margem de escolha.
Porém, admitir que a nossa vida está, foi, previamente escrita, no sentido em que as nossas escolhas estão quase sempre condicionadas, faz-me pensar que é da autoria de mau escritor -- afinal, a velha concepção platónica segundo a qual este mundo grosseiro, desconcertado, imperfeito, foi obra do demiurgo, um deus trapalhão, incapaz de reproduzir materialmente a perfeição das abstracções.
Não era nada disto que a minha sogra queria saber com tal questão, longamente meditada. A pergunta foi artifício retórico para iniciar o desabafo que se seguiu. Com as pessoas erradas. Que fazem o que podem para ajudar a resolver o seu problema a seu contento, nada fácil quando se esbarra com uma parede de certezas, indiferente aos sentimentos, aos pensamentos dos outros intervenientes -- outra evidência  de que afinal não podemos escolher o nosso destino.

sábado, 1 de novembro de 2014

Escrever é suspeito

As noites alongavam-se intermináveis, eu esperava no café das bombas de gasolina que amanhecesse para apanhar o primeiro autocarro, voltar a casa, dormir, dormir. Aquele purgatório repetia-se sempre que estava no turno das quatro à meia-noite.
A princípio, percorria a cidade adormecida a pé, dos Parceiros aos Marrazes, à estação; experimentei deitar-me no mato, escondido dos olhares, e tentei dormir. Mas o frio que remanescia da terra penetrava cortante pelo capote, pelas camisolas, pela carne, chegava aos ossos, e pouco tempo depois lá voltava eu ao café, o único que estava aberto durante toda a noite. Uma bica, um rissol, a um canto ocupava o tempo a escrever. Panfletos que depois haveria talvez de bater à máquina, imprimir na maquineta, esse copiador artesanal, e pela calada na noite deixar debaixo de automóveis estacionados, uma pedrinha em cima, para que só fossem descobertos muito depois de eu por lá ter passado. Ou poemas – textos empolgados, abundantemente adjectivados, recheados de metáforas e imagens, que há muito destrui. Assim ocupava a solidão dessas noites.
Aí pelas três, quatro da madrugada, quando cabeceava com sono, chegavam em vários carros sete ou oito clientes, sempre os mesmos. Com histórias de grandeza imaginária, à portuguesa, a impressionar ouvintes, mas sobretudo com fados. Ali ficávamos, o dono do café atrás do balcão, eu a escrevinhar, os fadistas a animarem a noite. Tinham jeito. Tinham garra. E desconfiavam de mim, naquele tempo em que todos desconfiávamos uns dos outros: que fazia eu ali àquelas horas, quando todos os outros dormiam? Nunca mo perguntaram. Mas pressentia a desconfiança nos seus olhares.
Até que um dia, já depois do 25 de Abril, um dos calmeirões se me dirigiu, como se falasse para o grupo: quem era aquele gajo, sempre a ouvir e tirar notas?

Ah, não! Tudo podia ser – menos bufo. E puxei dos galões. Era dirigente da Comissão de Trabalhadores, do Comité Operário dos Plásticos, este clandestino. Dei-lhes a ler o que escrevia, algum apelo aos camaradas operários para que se levantassem contra a exploração capitalista. Calei-os. Mas creio que ainda hoje, quarenta anos depois, ainda há quem me olhe com desconfiança nos cafés onde escrevo…

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Público deste blogue

Uma consulta às estatísticas das visualizações deste blogue surpreende-me: ultimamente, apesar de pouco ter 'postado', tem tido muitas visitas. E, maior das surpresas, provêm quase todas dos EUA!
Obrigado, amigos americanos! Só espero que a tradução do Google não faça de mim um jihadista!

A lição do estucador

Os dois estucadores, cada qual a trabalhar num lado da sala enorme, aperceberam-se da entrada de um dos encarregados. O mais velho, homem magro, seco, a avizinhar os cinquenta, continuou na sua labuta, com o rigor e a calma habituais. O mais novo, jovem recluso da Prisão-Escola de Leiria, deu em lançar frenético estuque para o tecto, a todo o instante gritava-me: -- Massa! Traz mais massa depressa! Massa! E eu corria a dar-lhe serventia, estranhando, na minha juventude, tanta energia súbita...
O encarregado começou a implicar com o mais velho. Que pusesse os olhos no jovem. Porque afinal ganhava bem mais. Para fazer menos. A conversa depressa azedou.
Às tantas, ouço ao velho estucador: -- A chaminé ainda fuma e ainda tenho batatas na despensa! 
Sem mais palavras, desceu do andaime, juntou as ferramentas e ala!
Também eu, que vou tendo batatas e lenha para o fogo, tenho a presunção de ser livre como esse estucador que nunca mais vi. Independente como ele. Com a arrogância de dispensar padrinhos, recusar empenhos, de não precisar das boas graças de nenhum merdas, dos muitos que infestam este país, que, por isso mesmo, fede insuportavelmente.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O morcego e a gripe das galinhas

Os media alvoroçavam o país. Era a pandemia de gripe. O governo decretou registo obrigatório nas juntas de freguesia das aves de capoeira, potenciais transmissores do vírus. Cidadãos apavorados chamavam as televisões, exigiam que toda a ave encontrada morta fosse analisada. Com o aparato protocolar. Na minha escola colocaram frascos de desinfectante, resmas de folhetos a alertar para a doença, a indicar procedimentos preventivos, arranjou-se uma sala para isolamento de aluno que fizesse atchim! até que chegassem técnicos do centro de saúde. Um colega abria as portas com toalhas de papel, recusando-se a tocar nos puxadores...
Pois com o país paranóico, um cidadão telefona em pânico para a protecção civil: tinha encontrado um morcego morto, exigia que fosse analisado. O responsável, não sabendo o que fazer, telefonou ao delegado de saúde.
-- Não posso fazer nada, vou a caminho do Algarve para umas férias...
-- Ó doutor, o homem não se cala...
-- Diga-lhe qualquer coisa...
-- Mas ele não sossega! Exige, por força, a presença do doutor!
-- Já lhe disse que não posso...
De repente, o responsável da protecção civil teve uma ideia, daquelas que nos fazem gritar como o sábio da antiguidade: Eureka!
-- Ó doutor, os morcegos não são aves!
-- É isso! Diga ao homenzinho que morcego não é ave, não apanha gripe das galinhas!
(História ouvida ao Nuno, em plena pandemia. Que me ocorreu agora ao ler um comentário  sobre morcegos.)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Lá vai o gajo!

— Para a semana, lá vai o gajo!
E lançou em voo cana, a imitar o avião em que partiria para a América. 
Pois um dia o gajo voltou, a férias com a família. Ele transmudado em adolescente gringo, no vestir, nos modos, nos interesses. Esquecera por completo as amizades de criança, olhava com desprezo para a nossa pobreza, que fora a sua até aos cinco anos. Naquele tempo, em que na aldeia as mulheres cobriam as tranças com lenços, e pouco mais descobriam que as mãos calejadas, as unhas sujas, as canelas peludas, os pés encardidos do pó dos caminhos, a irmã, mais velha, género boazona, deslumbrava a rapaziada com os seus decotes generosos, hot pants reduzidos a expor pernas depiladas, tentadoras coxas bronzeadas que enlouqueciam a rapaziada, a sonhar abri-las. (Ah, não tivessem arrancado as vinhas, e elas poderiam contar das inúmeras punhetas por lá batidas em sua honra por chusmas de rapazes augados!) O pai, que partira cavador, terceira classe feita, trajava agora como turista americano, sapatilhas e meias brancas, calções de cáqui, chapéu de palha, máquina fotográfica reflex a tiracolo. Contavam as velhas que o encontravam meditativo no cruzamento de caminhos, a tirar fotos a coisas sem jeito nenhum, ou a escrever em caderno que sempre o acompanhava. No adro da igreja os homens escutavam-no curiosos: na América, lia vários jornais por dia...
— Portugueses? Há lá jornais portugueses?
Haver, havia. Mas ele apenas lia os ingleses. Porque nos portugueses era só quem tinha nascido, quem tinha sido batizado, quem tinha morrido...
Crescia o espanto nos olhos dos ouvintes, também eles a suspirar por quem lies enviasse carta de chamada para largarem as enxadas e partirem para esse Eldorado, onde se entrava cavador analfabeto e se vivia como lorde letrado. Só eu duvidava de tal proficiência linguística, que na véspera ouvira a mulher, a única da família que se preservara barroa, a contar à minha mãe, após se assegurar de que não havia homens por perto: — Sabes como é que se diz saia em Inglês? Acena a minha mãe negativamente. E a americana, triunfante: — Cona! Pois vê tu, e ria perdidamente, que aquelas cabras andam com a cona à mostra!
É de ternura o sorriso com que recordo estes pequenos nadas da infância, paradigmas daquilo que fomos, daquilo que somos. Pobre país de ludíbrios, de mistificações, de mentiras, em que nos cobrimos de ridículo a fingir ser aquilo que jamais seremos, talvez para esquecer que a vida é cana lançada em breve voo, depois — Lá vai o gajo!  

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Bullying avant la lettre

O Tóino brinca pacífico à porta de casa. E eu a gritar-lhe, preparado para fugir ladeira acima:
-- Eh bucha! Não me apanhas, não me apanhas, gordo de merda!
Ele ainda me persegue. Mas depressa se cansa, volta atrás esbaforido, a vociferar ameaças:
-- Ah, quando te agarrar, eu faço, eu aconteço....
À noitinha a minha mãe manda-me fazer recado: -- Vais a casa da avó da Luz...
Tinha de passar pela casa do Tóino.
-- Não vou, tenho medo...
-- Medo de quê, se ainda é dia? Toca a andar, seu medricas! 
Cheguei a casa da minha avó ofegante, coração aos coices, da rápida corrida para evitar maus encontros. Mas no regresso, lusco-fusco, o malandro pegou-me de emboscada: 
-- Desta é que mas pagas!
E agarrava-me por uma orelha, esbofeteava-me, -- Vá, chama-me agora bucha!
Eu choramingava, entre lágrimas e ranho: -- Vou dizer à minha mãe... É tanto me contorci e berrei que consegui libertar-me. Apenas me afastei três pulos, -- Ranhoso, bucha, és só banhas, paneleiro de merda! -- nem sabia então o que era isso. E ele, a quem a fúria dava asas, quase a apanhar-me outra vez, perseguia-me até casa, a rosnar ameaças espumadas: -- Agora é que as levas a sério, dou-te coça que te vai servir de emenda!
A chinfrineira atrai à porta a minha mãe. -- Que guerra é essa, vamos lá a parar com isso!
-- É este bucha que me bateu e quer bater-me mais!
-- Não admito que me chames bucha!
-- Alguma lhe fizeste!
-- Eu? Vinha a passar de casa da avó, agarrou-me de surpresa, começou a bater-me...
-- Porque tu esta tarde chamaste-me nomes!
-- Eu? E para a minha mãe: -- Que eu seja ceguinho...
A minha mãe estava brava. Um marmanjo daqueles -- bucha, gordo, ia eu dizendo, já agarrado às saias dela -- a bater no seu filhinho, criança indefesa, "relezica", e sem quê nem porquê. 
-- Pois a tua mãe vai sabê-las e é agora!
Eis que as nossas mães ralham, a do Tóino que não aguenta mais ouvir a garotada a atentar-lhe o filho, que só quer brincar sossegado, a minha que nomes não fazem sangue nem marcas como as que tenho na cara: -- Ora veja-me lá o que o seu filho me fez ao garoto, acha bem?
-- E você acha bem que o seu lhe chame gordo?
-- Pois se o é!
Era, mas de doença! E doenças não se atiram à cara. 
-- Doença? Vossemecê até conta por aí: "O meu Tó é uma boquinha abençoada, come uma dúzia de sardinhas de cada vez!" 
-- Ora, o que come ou não come é comigo. Felizmente posso dar-lhas, não sou como umas e outras que têm de dividir uma sardinha pelos filhos.
-- Pobre, mas honrada, ouviu? E que o seu filho que não torne a bater no meu!
-- Ora, o seu que lhe não chame nomes! E fecha ruidosamente a porta de casa, farta da peixarada.
No caminho de casa, levo reprimenda forte: -- Ai de ti se eu sei que o voltas a provocar! Quem vai, vai, quem está, está.
-- Eu, mãe?  Ele é que me bate primeiro...
-- Se não podes com ele à unha, chega-lhe à pedrada! Não te venhas é queixar para casa!
Pois sim. Mal saía da escola, atirava a mala para cima da mesa, enchia a boca de torrões de açúcar e corria escadas abaixo antes que a minha mãe me impedisse. Ainda me gritava da janela: -- Onde vais? Já fizeste os trabalhos de casa? Merenda primeiro!
-- Vou brincar, depois faço-os. Não tenho fome, como depois...
Lá estava o bom do Tóino a brincar pachorrento à porta.
-- Eh gordo! Bucha de merda, paneleiro! Não me apanhas! Não me apanhas!
E ele outra vez a espumar ladeira acima: -- Vais ver a coça que te dou quando te agarrar! Ainda te faço pior do que ontem!
-- Ó mãe, o bucha quer bater-me outra vez! grito, ele olha em volta, detém-se por um instante, o bastante para me pôr a salvo em casa, galgando de pulo as escadas. 
-- Vieste a fugir de algum? E a minha mãe, desconfiada por me ver chegar bofes à boca, deita mão a verdasca justiceira.
-- Eu, mãe? Vim a correr para fazer os trabalhos da escola!

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O mistério da agricultura biológica

De todos os mistérios da vida moderna, o que mais me intriga é a moda da agricultura biológica. Nascido no campo, descendente de gerações de camponeses pobres, nunca consegui ver na agricultura o maná que agora apregoam. Antes sempre fiz minhas a as palavras daquele papa, Pio não sei quantos: "Há três maneiras de um homem se arruinar. Ao jogo, com as mulheres, com a agricultura. O meu pai escolheu a mais trabalhosa." (Já agora, o meu também. E morreu debaixo do tractor...) Depois, ouvi, li. Que a maior parte dos solos do nosso país não tem aptidão agrícola; que o relevo dificulta ou torna inviável a mecanização; que o clima, quase imprevisível, é uma ameaça permanente. Que sem financiamento...
Pois olho para a televisão e lá estão os profetas da novíssima revolução agrária — a agricultura biológica. Como os adeptos das novas religiões, não se contentam em acreditar, querem persuadir todos os outros de que há um mundo de oportunidades em cada recanto de urtigas, em cada silvado, em cada terra inculta. E trazem consigo um mundo de promessas, de certezas, numa área onde sempre predominou a incerteza da chuva, do Sol, das pragas, do escoamento dos produtos a preço compensador. 
Escuto-os com atenção. Um cavalheiro jovem, bem falante, cujas mãos negam ter alguma vez pegado num cabo de enxada, numa tesoura de poda — ou não estariam assim mimosas, esguias, de unhas irrepreensivelmente cuidadas, a indiciar cuidados de manicure. Três jovens senhoras, branquinhas de cera como ele, por cujas faces nunca passou o quente Suão, a agreste nortada, os ventos carregados de água que fustigam o rosto como agulhas. A agricultura é agora actividade de salão?
Fico à espera de respostas: que é preciso para uma família sobreviver nessa agricultura? Que rendimento pode esperar, por mês, por hectare, ou por cabeça? Como fazem para que o regadio chegue às culturas, como as defendem das pragas, dos coelhos, dos javalis, das geadas inesperadas, das vagas de calor, das semanas de chuva constante em que tudo apodrece? Pagam impostos? Os filhos frequentam a escola? De onde lhes vem o dinheiro para as alfaias, as reparações e manutenções mecânicas? Têm assalariados quando o trabalho urge e não conseguem dar conta do recado?
Muita conversa, nada que me esclareça. E começo a suspeitar de que o negócio possa ser outro. Vender o produto. Dar formação, fazer cursos, talvez para desempregados. Eventualmente, receber subsídios...
Agoiro. Se assim for, como ficaremos quando os subsídios acabarem, que lá diz o povo, não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe? Ou os mercados saturarem. Ou, faltos de rendimento decente e seguro, aqueles que agora pegam na enxada desistirem da salsa, da segurelha e da hortelã?
Mas isto são apenas cogitações de Velho do Restelo, desconfiado de milagres, farturas e facilidades. Que viveu sem electricidade, sem água canalizada, sem saneamento básico, sem papel higiénico, a comer um pouco de carne nos dias de festa, nesses em que talvez houvesse gasosa ou laranjada para as crianças. Que não gostaria nada, mesmo nada, de voltar a viver nessa penúria cruel. E que não consegue imaginar como sobreviver, como sustentar família, com o produto da venda de ramos de ervas aromáticas, umas alfaces, couves, algumas cebolas ou tomates, ou batatas, conforme a estação. 
Também eu defendo a produção nacional, o cultivo dos campos, a ocupação das gentes desempregadas. Poucas coisas me agradam tanto como o amanho da terra. Que não dá férias, nem dias de descanso. Que se não compadece com idealizações. Por isso me irritam os vendedores de ilusões. Que parece não dizerem aos candidatos a agricultor que o trabalho no campo é duro, ingrato, fedorento, porco, estraga as mãos, envelhece precocemente — e todo o investimento de uma vida pode ser perdido numa única noite de temporal, ou num desses incêndios em que o nosso Verão é pródigo.
FOTO: dez anos atrás, na sacha das batatas. Pois este belo batatal foi completamente destruído pelas geadas poucos dias depois. Assim é a agricultura...

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Entre Cós e Alpedriz no Andanças Medievais

A escritora Cristina Torrão, cuja amizade muito prezo, publicou no seu blogue Andanças Medievais uma simpática nota de leitura referente ao meu segundo romance, Entre Cós e Alpedriz. Aqui vai o link, depois, e excepcionalmente, comentarei o meu próprio post:
Entre Cós e Alpedriz

Eternidade, Deus, Alma, Física

Desde criança, quando a minha aldeia era o centro do Mundo e o Mundo o Universo, que penso insistentemente em questões que escapam ao humano entendimento: Deus, Eternidade, Criação, Alma, Vida, Morte, bem e Mal... Envelheci, mas nem por isso me deixei dos porquês da infância, sempre insatisfeito com a ausência de respostas convincentes -- que o correr inexorável do tempo torna mais urgentes e necessárias.
Por isso sou leitor compulsivo das obras de divulgação científica, na esperança de que a ciência me esclareça daquilo que as religiões são incapazes. E o último livro terminado, Eternity, God, Soul, New Physics, de Trevelyan,
Booké absolutamente fascinante. O autor, sem prescindir de linguagem científica rigorosa, discute estes assuntos que, em geral, andam arredados da ciência, relegados para a religião ou para a filosofia, e, tendo em conta recentes experiências intrigantes, que parecem indiciar a possibilidade de existência (ou, pelo menos, a concepção) de um espaço sem tempo (a Eternidade) e a Ciência da Informação, recupera velhas ideias, como o Idealismo e o Panteísmo.
Em termos muito sumários, faz da Informação, entidade abstracta, sem massa nem energia, mas com existência indiscutível, a chave para a resolução dos paradoxos da Mecânica Quântica, como, por exemplo, o facto de uma partícula, qualquer que seja, ter natureza corpuscular ou ondulatória -- dependendo da observação. Defende, sempre sustentado em experiências de laboratório, que não é a observação que determina a natureza corpuscular ou ondulatória das partículas (o que permitiu num passado recente a afirmação de que a Lua só lá está porque há alguém para a observar), mas a possibilidade de observação.
O Universo é assim constituído não apenas por matéria e energia, mas também, e sobretudo, por informação. Na síntese do físico J. Wheeler, "it from bit": as partículas são pacotes de bits.
Não há, na sua perspectiva, incompatibilidade entre as recentes descobertas da Ciência e a existência de Deus, Alma, Eternidade. Pelo contrário, essas descobertas parecem evidenciar, sustenta o autor, a verosimilhança dessas entidades postuladas pelas várias religiões desde tempos imemoriais.
Um livro que seguramente aborrecerá tanto os ateus convictos -- se Deus não existe, para quê perder tempo com Ele? -- como, por exemplo, os cristãos fundamentalistas, ao rejeitar a ingénua criação do Mundo por um ancião ranzinza, não raro ciumento, frequentemente colérico e vingativo -- o velho Jeová do Antigo Testamento. O Deus que nos propõe é uma recriação actualizada à luz do conhecimento científico do velho Panteísmo:
And if we have the courage to look beyond the simplistic views thundered from pulpits and the primitive conceptions of ancient prophets, to analyze reality with minds enlightened by knowledge and reason, we see God right before us. Not as a glorious king on a golden throne aloof from the travails of humanity. Not as a remote, abstract force, a ruler of mathematical laws from which Nature evolves, indifferent to our sufferings. But as a transcendent Mind, interwoven with all of reality. This is the God of science, the pantheistic God, the God who suffers with us.

sábado, 27 de setembro de 2014

Chuva civil não molha militar

O tempo convida à preguiça, a chusma de alertas laranja e amarelo que recebo do IPMA, à razão de dúzias por dia, desaconselha sair de casa, desaconselha ir para os Montes trabalhar no campo. Afinal, com os temporais previstos nada poderei fazer.
Mas lembro-me de que isto dos alertas, das previsões catastróficas, é recente. Meia dúzia de anos atrás saíamos e logo víamos se chovia, se ventava -- não havia então avisos de fenómenos extremos de vento. E os nossos antepassados foram à Índia, talvez por então não haver IPMA nem alertas. Eis-me portanto no campo, entre Terra e Céu, a fazer desparra tardia na vinha a ver se os cachos por vindimar aumentam de grau. Precavido com capa para a chuva pelo sim, pelo não. Lá pelas quatro e meia da tarde desponta sobre a colina nuvem suspeita. Como animal farejo o ar, quase sinto a electricidade: vem aí carga de água, vem aí trovoada. E eu não gosto nada de ser surpreendido por uma delas em cima do tractor. Pelas minhas previsões, a chuva vai desabar dentro de cinco minutos. Acertei em cheio e a chuva também, em cima de mim, a meio do percurso para casa. Acompanhada por granizo grosso como ervilhas e relampejar constante.
Não, não penso que teria sido melhor não ter vindo para o campo, não, não me dão saudades o conforto da casa, o sofá, um filmezito de sábado à tarde. Viver afastado da natureza não é, para mim, viver.
E os alertas? Pois até agora nada de mais: um bom aguaceiro, trovoada, nada que justifique tanto alarmismo. Compreendo que os meteorologistas precisem de se defender das acusações dos autarcas, mas se continuam a profetizar diariamente catástrofes acontecer-lhes-á como ao rapaz que para se divertir gritava "Lobo!"
FOTOS: (1) o Tex, cão a quem os alertas não assustam, sempre pronto para pular dentro da caixa do tractor e fazer-me companhia. (2) Temporal que se aproxima.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Morrer nos Montes

Colho a maçã Starking, este ano abundante, lustrosa, sempre atento à escuridão que se adensa. Vem aí temporal. Mas o vício do campo apouca os receios da molha, até o maior, o de ser apanhado por trovoada em cima do tractor.
Chega até mim o dobre a finados do sino da aldeia. Coitado, outro velho que se foi, penso, de cada vez que venho à aldeia morre alguém.
Os primeiros pingos de chuva, grossos, esparsos, fazem-me correr para o tractor, acelerar para casa. Mesmo a tempo. Tocada a vento forte, a chuva cai bruta sobre a povoação, e eu já resguardado, começo novas tarefas, desta feira a preparar adega e utensílios para a vindima.
Telefona-me um amigo distante a dar-me triste nova: ao que leu no jornal, morreu nos Montes um jovem, 23 anos, em acidente de tractor. Assim morreu o meu pai, assim morreu um vizinho, assim têm morrido tantos outros, por cá e nos arredores. Sempre me choca a morte no trabalho, mais ainda quando se trata de um jovem promissor, cheio de sonhos de agricultura biológica, produção de ervas aromáticas, a amanhar encostas soalheiras que outrora foram férteis e ficaram perdidas até que ele, e outros como ele, as começaram a desbravar, lavrando-as, plantando-as, tornado-as num regalo para os olhos.
Mas o bucolismo, a pacatez campestre são ilusão. A beleza de uma terra bem amanhada, de uma horta viçosa, de um pomar a "zombrar" com frutos reluzentes esconde, não raro, perigos corridos, sustos apanhados. E nós, mesmo sabendo-o bem, continuamos a arriscar, para desfazer um tufo de ervas sobrevivente que desfeia a lavoira, para destruir um silvado na estrema, como no acidente que vitimou o meu pai, ou reparar um velho caminho, como me constou que sucedeu neste acidente.
Não conhecia o infeliz moço. Sou quase estranho e estrangeiro na minha própria terra, de onde saí aos catorze anos. Mas lamento sinceramente que os seus sonhos agrícolas lhe tenham sido funestos. À sua família, a todos os que o amavam, as minhas sentidas condolências.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Como um rio

Seduz-me a fluidez e a plasticidade da água que corre livre de empecilhos. Assim queria a minha escrita: clara, cantante, envolvente, a fervilhar com a perpétua guerra entre vida e morte. À superfície, a tranquilidade ilusória, quebrada por um ou outro salto de peixe, ou cortada por pacato barco a remos; nos remansos e fundões, o refulgir dos cardumes, à meia-água os barbos de longos bigodes, de tocaia, nos limos ondulantes, na sombra dos salgueiros, nas ervas da margem, a enguia voraz, o achigã matador, a delicada víbora, a sanguessuga repugnante.

Este meu fascínio pela água deve ter origem semita, talvez judaica, a ver pelos apelidos de meu pai (Silva, Catarino), a que não serão alheias as origens da minha aldeia natal, povoada por cristãos-novos. Muito misturada com sangue moçárabe, resquício da longa colonização muçulmana da região, a que pôs cobro D. Afonso Henriques, ao tomar Alpedriz em 1143.

Assim sou. Uma Palestina, sempre em guerra comigo mesmo, sempre descontente com o lodo que desajeitadamente levanto do leito e turva as águas que quero claras, para nelas reflectir o Grande Rio que passa inexoravelmente e não volta jamais.

domingo, 31 de agosto de 2014

Contra o fecho de escolas


Fecham as escolas, obrigam as crianças a viagens demoradas e perigosas, todo o dia afastadas das famílias. Desertificam o interior do país. Porém, não me consta que tenham encerrado os serviços inúteis do Ministério da Educação. Quando muito, mudam-lhes o nome.
Na 24 de Julho, na Praça de Alvalade, na 5 de Outubro, nas capitais de distrito, essa hidra de mil cabeças (quem duvidar que as conte) inventa constantemente tarefas inúteis para melhor sobrecarregar escolas e professores, alimenta a burocracia, alimenta-se da burocracia. Uns bons anos atrás, inspirado em factos reais (como mestre Camilo, "não tenho imaginação, tenho memória") trouxe para a ficção uma das suas funcionárias.

"Podia ter telefonado a combinar encontro, mas preferi aguardar a minha nora à porta de casa. Asneira. Passaram as cinco, hora a que é suposto chegar do emprego, as seis, as sete... Eis que finalmente aparece, sai do carro, divertida, radiosa. Interpelo-a, volta-se, vê-me, e quem cora sou eu, homem de outro tempo, ao ver sair pela porta do pendura cavalheiro bem posto que a abraça pela cintura... Ela, surpreendida por me ver ali, à sua espera, mas sem perder a pose nem a prosápia, afasta discretamente o braço do parceiro e cumprimenta-me afectuosamente com duas frescas beijocas nas faces escaldantes: que gosto em ver-me, que prazer, há tanto tempo, que fizesse o favor de subir... Recuso.
Não, não aceita desculpas, certamente veio para falarmos, e depois é sempre um prazer receber o "ex"-sogro, remata descaradamente... E com o mesmo despudor apresenta-me o seu "namorado", acrescentando pudicamente que só o era desde que se tinha separado do Bruno, não fosse eu imaginar coisas...
Ah, não me obrigará a entrar, a fazer sala estupidamente, a ouvir os seus argumentos (sempre o que mais facilmente se arranja). Já estou perfeitamente esclarecido, dispenso mais explicações, e se as julga necessárias não é a mim que as deve dar.
"Adeus", digo secamente, e começo a afastar-me.
Parece surpreendida: "Mas não entra? Temos tanto para conversar... "
"Comigo, não. Já percebi tudo." Afasto-me apressadamente, ignorando malcriadamente os seus chamamentos. Como é que é? Corneia o meu filho e quer a minha bênção? E já no carro, a caminho de casa onde o Bruno aguarda ansioso por boas novas, enquanto peso as palavras, procuro a forma de lhe dizer o que tem de ser dito sem agravar mais a sua neura depressiva, faz-se-me luz, tão certo como dois mais dois serem quatro!
Quando casaram, uns anos atrás, a mulher era professora e queixava-se constantemente dos alunos e respectivos pais, das colegas e da escola, do excesso de trabalho e das agruras da profissão. Colocada no Alentejo, fazia então uns duzentos quilómetros diários de casa para a escola e da escola para casa. O Bruno, para lhe evitar tal incómodo, e também para a ter mais perto de si, aproveitou conhecimentos partidários, meteu cunha, conseguiu que fosse destacada para um qualquer serviço do Ministério da Educação. Nova, gira, certamente aproveita as trinta e cinco horas de ócio para namorar! Não admira, portanto, que se queixasse da sensaboria da relação conjugal, depois de um dia de trabalho exaustivo, por entre mails com anedotas, toques de telemóvel, SMS aos colegas mais atraentes, namorisco no bar antes dos almoços de trabalho para discutir os mais prementes problemas educativos das escolas a seu cargo, como a pertinência do razoado dos respectivos projectos educativos..."

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Incêndio na aldeia

Pela rua abaixo, mulheres gritam, correm homens e rapazes, perguntando uns contra os outros onde é o fogo; e uns afiançam que é na Charneca, porque o povo se apressa nessa direcção, outros gritam que é no Outeirinho, o clarão do incêndio parece vir de lá, e todos acorrem feitos um rio humano que quer dar combate ao inimigo antes que ganhe forças e devaste a povoação. Logo avistam, subindo do tear do Abel, labaredas medonhas que cortam a chuvinha e a negrura da noite, rolos de fumo que descem asfixiantes, envolvendo os gritos de medo, de desespero, de incentivo, cada qual querendo ser o primeiro, e eis mulheres que acorrem, umas carregando baldes nas mãos, outras canecos e almudes à cabeça, enchidos no poço mais próximo, felizmente logo do outro lado da rua, eis homens valentes que entram pelo tear adentro, protegendo com boinas e bonés a face das chamas que lhes chamuscam cabelo e barbas por fazer, e eles deitam abaixo barrotes e madeiros inflamados, e eis que o telhado ameaça desabar e gritam, — Fujam, fujam, que morremos aqui, prontamente todos recuam, e é com a raiva da impotência que vêem as chamas tomarem conta do negócio do Abel e do emprego certo de uma dúzia de mulheres. Ah, mas não vão ceder, pelo menos sem luta árdua, e mal o telhado desaba, atiram-se novamente para o brasido, pisam-no com as fortes botas de cavador, lançam terra com as enxadas, despejam baldes e canecos que as mulheres lhes passam, e a água prontamente estruge, guincha, evapora-se em rolos de fumo. É então que o Abel chega com um motor de rega, rapidamente se estendem as mangueiras, se ferra o chupador e, após esforços para o fazer pegar, a água jorra em abundância e as chamas recuam, aliviando o povo que aproveita para respirar um pouco e endireitar as costas, já de si doridas de toda uma vida de enxada. 
— Ah, o progresso!, comenta-se, vendo como uma única máquina desenvolve mais trabalho do que uma multidão exausta, mas pouco depois o motor tosse, engasga-se, a preocupação espelha-se em todos os rostos, parece que vai parar, — Que será? Falta de gasolina?, e prontamente, não imagino saída de onde, surge uma lata de combustível, mas, na quase escuridão, atabalhoados, nervosos, não acertam com o bujão do motor, e é mais o líquido entornado do que o que entra no reservatório. Logo, logo, o Gamela teve ideia luminosa: acendeu um fósforo e chegou-o ao depósito para que vissem o que faziam. Foi um estoiro. Aqueles que atestavam o motor foram lançados a metros de distância, tombando chamuscados, alguns com o cabelo ou a roupa a arder, não sei se da gasolina inflamada, se da raiva que os consumia; outros, mais afastados, dando vazão ao sentimento justiceiro do povo, expulsam dali o rapaz à força de sopapos e de pontapés no traseiro, e ele, lesto, esgueira-se, as atenções momentaneamente distraídas com o uivo da sirene dos bombeiros que finalmente chegam e depressa extinguirão o incêndio — afinal, já quase tudo tinha ardido naquele barracão.
Aliviados, regressam aos poucos a casa, ainda lentamente, olhando frequentemente para trás, tossindo devido à fumaça que o rescaldo elevou e agora envolve a povoação, sempre comentando uns com os outros que podia ter sido bem pior se não tivessem evitado que o fogo chegasse às casas próximas; é agitados que se deitam novamente e por isso demoram a adormecer, apesar de a noite decorrer agora sossegada, sem roncos, nem gemidos amorosos, nem ralhos, apenas ao longe o ruído grave dos motores que inundam o tear do Abel, entrecortado pelo ladrar à desgarrada dos cães acorrentados nos quintais, alvoroçados pela agitação, incomodados por solidão e por carraças.
Um amor inventado, LeyaOnline

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Um empresário

Se eu tivesse juízo, ou ambição, escrevia coisinhas lindinhas, ou então deprimentes, pois me parece que para ambas não escasseia público e procura. Como me falta o sentido prático e por ambição literária apenas tenho a de escrever o que quero, como quero, desperdiço esforço e tempo com textos como o que se segue, extraído de um conto já com uns anitos. E depois, de cada vez que se fala noite e dia do último escândalo financeiro, se pergunta ingenuamente como é que se chegou a este ponto... bom, lembro-me: já escrevi sobre isso.  Como há dias aqui coloquei excerto de um conto premiado que fala de bancos e acções, hoje, para desenjoar do BES, segue um centrado no têxtil. Afinal, a causa  de sempre para a nossa decadência: somos país de chico-espertos.
"— O Velho come aquelas gajas todas. Nem imaginas. E mais as secretárias dos clientes, na Alemanha. Vai lá todos os meses, sempre carregado de boas prendas para elas. Por isso, faz bons negócios, e diverte-se à grande, o cabrão.
Apesar de o negócio do têxtil pressagiar já crise, corre a rodos o dinheiro, não rareiam ainda os fundos provindos da CEE, uns para formação profissional, outros para modernização da maquinaria, actualização tecnológica, construção de uma ETAR, incentivos e apoio à exportação… Não importa o pretexto. Os efluentes continuam a seguir direitinhos e fedorentos para o rio Vizela. Os operários sabem mais do que precisam para trabalhar, se querem estudar matriculem-se no liceu à noite, e fazem falta junto das máquinas, nem pensar em os dispensar umas horas que seja para os cursos de formação profissional; as verbas recebidas para pagar a formadores e a formandos embolsa-as o patrão (então não paga o salário a engenheiros e a operários, pontualmente a 30 de cada mês?) As máquinas actuais servem muito bem, e das exportações trata ele próprio, como faz com os incentivos à exportação, gastos em prendas e noites de hotel com as secretárias alemãs. E o sobrante é investido meticulosamente em carros topo de gama, jipe para a mulher, almoços e jantares de luxo, iate na marina de Vila do Conde, mulheres e despesas de sedução — despesas de representação, como as inscreve o seu contabilista. 
Veio há pouco ao Norte o primeiro-ministro Cavaco Silva avisar que é tempo de acabar com as despesas sumptuárias no vale do Ave. Pois sim. Como sempre, os seus discursos sibilinos servirão para mostrar à posteridade, quando se recandidatar à Presidência da República, que lançou oportunamente os alertas e deixou continuar a roubalheira — palavras, leva-as o vento. Chegará o dia em que os têxteis serão liberalizados, a fábrica declarará falência, pouco depois o Velho abrirá outra com novos subsídios, outros empréstimos bancários, e a vida à tripa-forra prosseguirá até que a Europa se canse de nos financiar. Então o industrial viverá dos proventos acumulados e bem acautelados, uns em nome da mulher, que oportunamente entrará com processo de divórcio embora continuem a coabitar (pobrezinhos, não têm outra casa onde viver!), o palacete posto a salvo de penhoras judiciais, em nome da filha, se lhe leiloarem bens em hasta pública serão seguramente os carros velhos, pois os amigos nas finanças continuarão a valer-lhe como ele antes lhes valeu, também o apartamento em Portimão será oportunamente resguardado dos credores, esse fica em nome do filho, que agora descobre que a internet também serve para o engate, enquanto lentamente, faixa a faixa, o CD-ROM vai gravando as músicas pirateadas que à noite venderá aos amigos, modesta ajuda para farra e passa…"

domingo, 27 de julho de 2014

Conservador me confesso

A propósito do post anterior, o meu amigo Reinaldo chama-me conservador. E põe-me a reflectir. Porque desde a infância procuro saber quem sou, o que sou. Mas conservador?
Bom, como classificar homem casado com uma só mulher, há mais de quarenta anos, nestes tempos de casa e descasa? Que respeita a palavra dada, os compromissos assumidos? Que paga prontamente as dívidas? Que prefere, sem a menor dúvida, a comida tradicional portuguesa à de autor, gourmet e quejandos? Que usa lenços de pano, sempre calça peúgas debaixo das sapatilhas, a que não chama ténis, cumprimenta com aperto de mão clássico os amigos e preserva-os ao longo dos anos? Que dizer de um homem que, nos tempos que correm, põe, como sempre pôs, os valores acima dos interesses, dos apetites? Que aprecia rotinas, que pratica a mesma arte marcial há mais de três décadas?
Visto assim, nenhuma dúvida de que sou um conservador.
Por outro lado, não sou avesso à inovação. Escrevo num iPad e não com caneta Parker de aparo de ouro. Antes escrevia no computador, desde que adquiri o primeiro, no início dos anos noventa -- e mais para trás escrevia à máquina. Aderi à fotografia digital nos seus primórdios, farto de câmara escura. Prefiro ler ebooks a papel -- mas a minha vista e os meus hábitos de leitura podem ajudar a explicar esta preferência pouco conservadora. Fascinam-me as engenhocas, as descobertas alheias, as novidades do progresso tecnológico e, sobretudo, científico. 
Mas o meu amigo quer insinuar que sou politicamente conservador. Ora aí tenho de discordar. Desde que me afastei da praxis política, pouco depois do 25 de Abril, não me filiei, não me tornei simpatizante de nenhum partido, o que me permite manter a distância, a visão fria sobre as respectivas ideologias e ideias (um deserto) e as políticas propostas - infelizmente, digo-o com pena sincera - é tudo a mesma merda. Todos, com as suas políticas, ou com a ausência de políticas alternativas, nos mergulharam na fossa fedorenta de onde não vejo como conseguiremos sair. Já votei em todos os partidos, inclusive, confesso-o com alguma vergonha, no partido do Reinaldo, como aconteceu recentemente nas eleições autárquicas, precisamente porque alguns dos candidatos eram amigos cujo mérito reconheço e admiro...

Tudo bem pesado, parece-me evidente que o fiel da balança se inclina nitidamente para o lado conservador. Mas, assim gosto de me ver, assim gostaria de ser, conservador esclarecido, de olhos abertos. Conservador, mas não de direita, nem atacado pela cegueira conservadora do PC ou do Bloco, nem afectado pelas fogaças mediáticas de um PS acéfalo. Sem preconceitos, livre para votar no partido que, em cada eleição, me apresentar o projecto mais credível, ou menos mau, ou candidatos que respeite. Ou em nenhum, como fiz nas últimas eleições presidenciais.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

O Caixinha e o caixão

Cheguei um pouco atrasado à primeira aula da manhã, já os corredores do Instituto Comercial estavam vazios. O professor de Elementos de Direito Civil, Caixinha de seu apelido, pessoa de ordinário afável, camarada, sempre a insinuar que também ele estava contra o regime, parecia esperar apenas por mim para começar raspanete exaltado: ele a tratar-nos bem, como pessoas, nós a espetar-lhe a faca nas costas, mas daqui para a frente outro galo cantará, acabaram-se as confianças, cada macaco seu galho!
Consciência tranquila, nada sabendo, nada compreendendo, olhava-o fixamente, a tentar perceber o que o teria zangado daquela forma -- pelos vistos comigo, e os meus colegas da dianteira pareciam confirmar as suas suspeitas, voltando as cabeças para trás, para mim, como se eu fosse o responsável pela fúria sonorosa que se tinha apossado do homem.

Numa qualquer interrupção, talvez a receber o livro de ponto, bichanei a colega do lado: porque é que o Caixinha estava tão bravo?
Passou-me à socapa panfleto acabadinho de sair, emanado da clandestina Pró-Associação de Estudantes, composta predominantemente por alunos expulsos nas greves dos anos anteriores, os quais agora integravam também o Estar na Luta, de Económicas -- onde o pasquim fora elaborado.
Da primeira à última página, professores e funcionários eram ofendidos, ridicularizados. E encontrei, pelo meio, desenho tosco, feito a estilete no estêncil, de uma faca e um caixão, a ilustrar texto com título sugestivo:
CADA CAIXINHA FABRICA O SEU CAIXÃO
Compreendi então. As evidências estavam contra mim, desde o meu aspecto -- cabelo comprido, barba, camisa de camuflado comprada na Feira da Ladra --, ao comportamento e às companhias: chegara atrasado, como para evitar que me relacionassem com o panfleto, e viam-me amiúde com revolucionários; não sabiam, não podiam saber, que eles, no entanto, não confiavam em mim, que era então anarquista, e por isso mesmo me não tinham posto a par dos conteúdos do panfleto, nem mo tinham dado para distribuir.
No intervalo, avisto o Luís M., "estudante" que apenas entrava no Instituto para agitação: -- A malta, pá, tem que se unir, pá, contra o director, pá...
-- Então, já leste? Tá bom, não tá?
Protesto. Mal escrito, conteúdos injustos e reles. Então o do Caixinha...
-- Um bom filha da puta, pá! Os professores são todos fascistas, pá, ou social-fascistas. Uns bufos! E tu, ou estás com os estudantes e a luta, ou estás com o inimigo. O do Caixinha está muito bom, os estudantes gostam, pá, já muitos mo disseram, pá, há que desmascarar esses gajos que se fingem amigos dos estudantes, pá... Fui eu que o escrevi, podes ir bufar-lhe...
Obviamente não fui. E no ano seguinte, cabelo curto, barba rapada, vestuário normal, eu era já um "estudante progressista", de dia a manifestar-me nas ruas de Lisboa berrando vivas à ditadura do proletariado, de noite a pintar nas paredes Abaixo a guerra colonial, a distribuir pelas caixas de correio tarjetas com votos de longa vida ao camarada Mao...

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Menos Dois

1971 ou 1972, Instituto Comercial de Lisboa. Os estudantes em protesto apinham-se nas escadas em caracol exigindo a presença do director. Como não aparece, começam a bater com os pés nos degraus de madeira. Eis que se abre porta no primeiro andar, surge apavorado professor de Matemática, o Menos Dois:
-- Senhores alunos! senhores alunos, grita, tentando fazer-se ouvir sobre o clamor geral, estou aqui não como professor, mas como engenheiro! Para vos dizer que se continuam a bater com os pés as escadas caem!

FOTO: em frente, o edifício onde funcionou o Instituto Comercial de Lisboa.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Julho é ladrão...

[Dois anos atrás sofri a agonia da minha mãe. O texto que se segue é um dos registos da época, amputado de fragmentos demasiado pessoais.]


Telefonam-me do lar: a minha mãe vai a caminho do hospital. Precipito-me, chego ainda antes dos bombeiros. Fazemos o check in, passamos à triagem. O enfermeiro, moço, preenche formulário, desinteressado das respostas, coloca-o em placard junto à porta de um dos dois gabinetes médicos de triagem, e começa a espera. Ninguém parece ter pressa, nem as enfermeiras, seguras e empertigadas que andam para trás e para a frente como se estivessem atarefadas, nem as auxiliares que se juntam em grupo, galhofeiras, nem os raros médicos, aparentemente desocupados, todos indiferentes ao sofrimento das pessoas que agonizam no corredor degradado, na acanhada sala de espera tão apinhada de macas que ao movimentá-las chocam entre si e provocam gritos de dor a jovem acidentado, cabeça envolta em ligadura ensanguentada, há horas ali, esquecido por todos excepto por senhora discreta, elegante Olha a tua professora de Inglês, diz mãe para miúdo que passava sem a ver, ou porque, como os outros miúdos, há muito deixou de conhecer as professoras, ou porque a febre lhe embotou o discernimento.
Passam sonolentas as horas, chegámos pelas quatro da tarde, são quase duas da manhã, cabeceio com sono, imagino-me a mim mesmo estendido numa daquelas macas, agonizante talvez, esquecido por todos de que estamos nas Urgências, quem o diria com tamanha demora, com tanta calma dos profissionais. Em que pensarão os doentes, a sofrer silenciosamente, apenas o ferido na cabeça chora baixinho? Talvez, mais do que viver ou morrer, desejem que aquele purgatório acabe depressa, arrependidos de terem vindo ao hospital, melhor morrer em casa, a sós que seja, que naquela sala de espera, de solidão e indiferença atrozes.
A minha mãe chama-me, contorno as macas, desvio o olhar dos rostos marcados pela fealdade da doença e da velhice, assim serei eu, assim seremos todos um dia, uns de olhos fechados, outros de olhar vazio fitando o branco sujo da parede, Como está agora? Abana a cabeça com indiferença, sussurra, a voz minada pela fraqueza e quase inaudível devido à traqueostomia: — É tarde para ti, vai-te embora! É tarde, sim, amanhã tenho aulas às oito, e para além delas, que são o meu trabalho, as inevitáveis aulas de substituição dos jovens professores que incapazes de aguentar as suas turmas se baldam, deixando aos velhotes como eu o inferno de aguentar na sala os seus alunos, sem plano de aula, sem perceber nada das respectivas disciplinas.
Não a abandono, há um ano e meio que andamos os dois nesta vida, peregrinando de hospital em hospital, de urgência em urgência. Eis que finalmente nos chamam, primeiro para a triagem, depois para a consulta, é ainda preciso aguardar pelo resultado dos exames, das análises, que finalmente chegam.
Está tudo bem.
Mas, doutor, e recordo o historial clínico da minha mãe, Veja o estado em que está!
Como se sente, dona Isabel?
Mal, sussurra, e eu falo novamente da traqueostomia, dos meses entre a vida e a morte nos cuidados intensivos de Santa Maria após cirurgia de quatro horas, uma das quais com o coração de fora, no gelo, a derrame da aorta pleural, a infecção por bactérias resistentes aos antibióticos...
A sua mãe tem oitenta anos...
E o Manuel de Oliveira mais de cem...
As pessoas não são iguais.
E termina a consulta com a recomendação de que beba muita água. Tanto sofrimento, da minha mãe e algum meu, tantas horas de hospital, para receitar mais água?
Quantas urgências, quantos hospitais conheci já? Em quantas não passámos horas infindas, de espera insuportável? Leiria, em pavilhão pré-fabricado, apesar de o hospital ser novo. Ampla sala de espera, pistas de cor, amarela, vermelha, azul, consoante a gravidade diagnosticada na triagem, feita por jovem enfermeira na galhofa com os maqueiros, sem prestar atenção às respostas que eu lhe dava; Alcobaça, pequeno hospital da Misericórdia, tão pouco misericordioso como os outros, a mesma espera, as mesmas macas amontoadas em qualquer espaço livre, as enfermeiras divertidas a verem no computador as fotos das férias de uma delas; Santa Maria, sentado no chão do corredor por falta de cadeiras, com a Ana e a Sofia, na penumbra, à espera que por ali passasse o cirurgião com informações da operação ao aneurisma da aorta, depois meses à porta dos cuidados intensivos, de cheiro agoniativo, entontecedor, na esperança de fugazmente poder ver a minha mãe ligada à maquina, ciente de que podia ser a última, a piorar de dia para dia, – Mãe, sou o Zé, conhece-me? Vago gesto afirmativo, talvez apenas com o olhar, e eu falo, falo, sempre as mesmas conversas, invento, minto, mesmo que pareça ter adormecido, fico até ter de sair a mando da enfermeira ou porque se esgotaram os breves minutos da visita, ou porque soa o alarme de uma das máquinas, ou porque a minha mãe está novamente engasgada com muco, a precisar de ser aspirada...
Horas de viagem, horas de espera, para trazer algum alento: Mãe, não se deixe morrer, precisamos de si! E por resposta, aceno de mão a revelar desinteresse por tudo, vida e morte...
Tubo no nariz, tubo na garganta trasqueotomizada, máscara de oxigénio, mostradores a indicarem perigosa falta de oxigénio no sangue, ou ritmo cardíaco, ou tensão arterial elevada, ou sei lá que mais, naqueles aparelhos que tento decifrar, como tento decifrar a conversa enigmática das enfermeiras, talvez não saibam, apenas cumpram as indicações dos médicos, e estes também nada sabem, há que esperar...

Telefona-me a dona do lar com rodeios. Interrompo-a: a minha mãe morreu? Confirma.
Acrescenta pormenores. Estava de pé, agarrada ao lavatório. Caiu, deitaram-na na cama, vomitou. Terá sido como conta, suponho. Nenhum de nós lá estava. E o médico está de férias, virá à noite para passar a certidão de óbito.

() Caminhamos silenciosos atrás do carro funerário, quase um quilómetro e a subir, o calor aperta, lembro-me de que no funeral do meu pai, dezanove anos antes, o padre rezava altas vozes o padre-nosso. No cemitério a emoção vai e vem, só quero que tudo acabe depressa, sofri a agonia durante ano e meio, sofro a sua morte há já três dias, anseio por alívio, esquecimento. Censuro o meu egoísmo, recordo que de cada vez que peregrinei para as Urgências quase recriminava mentalmente a minha mãe por me fazer sofrer, por perturbar a minha rotina com as suas doenças que os médicos não diagnosticavam, ou diagnosticavam erradamente, minimizando-as, e eu então quase lhes pedia desculpa pelo incómodo, e agradecia veementemente, em vez de censurar a ignorância ou o desleixo com que a observavam... Acreditava neles porque era o que queria, o que me convinha, para que tudo continuasse na mesma... Afinal, quem tinha razão era a minha mãe: Está tudo a acabar! É o fim... E repetia com a certeza de que Julho é fatal para a nossa família: Julho é ladrão...Em Julho acaba tudo!

FOTOS: no lar, com a Sofia e eu, a 16 de Junho. Morreu a 22 do mês seguinte.