Número total de visualizações de páginas

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Os Inglaterras

Estávamos no Verão de 1983, o meu contrato no ensino tinha terminado a 31 de Julho, e sem emprego nem salário — não havia então subsídio de desemprego para professores — fui ensinar Português a estrangeiros durante o Verão numa escola privada de Lisboa.

Sempre exigente comigo próprio, a direcção apreciou o meu trabalho, e foi-me dando os casos  difíceis, que tinham exigido mudar de professor por insatisfação: pagavam bem, exigiam resultados e rápidos. Queriam aprender um português básico que lhes permitisse compreender e ser compreendidos em Moçambique ou noutra antiga colónia para onde iam viver dentro de duas ou três semanas. 

Ora em determinada altura foi-me passada uma família canadiana, pai, mãe, um adolescente rebelde, passe o pleonasmo,  e a irmã, ainda criança. A professora anterior não tinha conseguido dar conta da incumbência, nada fácil, como depressa descobri.

Não raro, tinha de mediar discussões ferozes entre pai e filho, que recusava trabalhar, sem nunca me esquecer dos testes semanais  que validavam a aquisição rápida do Português Fundamental I — de todos eles.

Os métodos, estruturais, exigiam que o ensino fosse em Português e extremamente repetitivo, a partir de modelos, algo como: 

Lisboa é a capital de Portugal.

Um habitante de Portugal é um português.

Em Portugal fala-se Português.


E eu começava pelo pai, aluno aplicado:

Paris é a capital da França.

Um habitante de França é um francês. 

Em França fala-se …

— Francês, respondia.

Portanto os franceses falam… 

— Francês.


Passava à mãe, agora com os espanhóis. 

Madrid é a capital de Espanha.

Um habitante de Espanha é espanhol.

Em Espanha fala-se…

— Espanhol!

Portanto, os espanhóis falam…

— Espanhol!


Depois, ao moço:

Londres é a capital da Inglaterra.

Um habitante de Inglaterra é um inglês.

Em Inglaterra fala-se…

E ele, despachado, a atalhar já a pergunta seguinte: —Inglaterra! Os Inglaterras falam Inglês!

Eu já era, então, adepto da chamada Pedagogia do Erro, a qual  valorizava os erros e procurava ensinar a partir deles: — blá, blá…

Mas o moço era rebelde, como disse, torcido, conflituoso, nada predisposto a aceitar que tinha procedido muito bem ao aplicar o que parecia ser a regra, mas nas línguas abundam as excepções e aquela era uma delas…

Esforços baldados. Ele teimava que eram os Inglaterras, o pai exaltava-se e eu… bom, eu dei-lhes a ler o manual do professor e desci ao bar a tomar um café demorado, à espera que a crise se resolvesse em família.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

O Macaco Nu

 Estávamos em 1967ou 1968. A biblioteca da minha escola funcionava muito bem, como já aqui contei. Com um sistema de multas por atrasos, quotas, rifas, e outras iniciativas, a professora responsável, que desempenhava o cargo sem quaisquer regalias, adquiria novos livros acolhendo bem os pedidos dos leitores viciados, entre os quais me incluía.

Ora na época fazia furor O Macaco Nu, de Desmond Morris, e eu, com a curiosidade e a irreverência da adolescência, fui pedir-lhe que o adquirisse para a biblioteca.

Recusou: achava muito bem que eu lesse tal obra, e até se prontificava a emprestar-me o seu exemplar logo que ela e o marido terminassem a leitura; mas não se atrevia a comprá-lo para a biblioteca a medo do padre conservador (nem todos o eram) V. da R. 

— Só com autorização do senhor director. Porque é que lhe não pedes?

Só conhecia o director de o ver nos intervalos à chapada aos alunos que corriam loucamente pelos corredores. E de ouvir falar dos seus métodos disciplinares, mais amigo de castigar à bofetada do que com suspensões. Mas não ia dar parte de fraco. E lá fui bater-lhe à porta.

Foi muito cordial, nada autoritário com fedelho de 14 anos  que pedia obra quase censurada para a biblioteca. Achava muito bem que eu o quisesse ler, Mas os teus colegas, não sei! Nem todos têm a maturidade necessária! Olha, até te posso emprestar o meu logo que acabe de o ler! Mas para a biblioteca, não, não quero brigas com o  padre. V.  Da R.  

Nessa tarde, ao namorar a montra da papelaria, não resisti, e com os meus escassos escudos, comprei-o, li-o até de madrugada, fascinado com o conteúdo, antecipando envaidecido o estatuto que a leitura de tal obra me daria nas discussões com os colegas e com os professores.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Uma dívida de gratidão

A biblioteca da escola onde fiz o Curso Comercial funcionava muito bem, graças à dedicação e ao esforço da professora responsável, que teve um papel fundamental na minha orientação como leitor.

Nem todos aceitavam a sua orientação, parecendo, até, que provocatoriamente  pediam livros que sabiam serem recusados para darem vazão à rebeldia da idade: — Se não posso ler o que quero, não leio nenhum outro!

Também a mim me recusou alguns títulos: lembro-me, por exemplo, do Amor de Perdição:

— Ias precisar de muitos lenços para as lágrimas! Lê primeiro este… Só viria a ler, deslumbrado, o Amor de Perdição já adulto, pelos meus vinte e tal anos. Mas valeu a pena a demora, porque, então, o soube apreciar, lendo muito para além do triângulo amoroso Simão-Teresa-Mariana. E continua a ser uma das minhas obras favoritas.

Foi com essa professora que eu, leitor preconceituoso, comecei a ler ficção científica, ao ponto de ficar viciado no género e na colecção Argonauta: As Flores que Pensam, obras de Ray Bradbury, Clifford Simac, Azimov …E também não-ficção: A Expedição da Kon-Tiki, À Margem do Tempo... Fiquei, aliás, muito surpreendido, quando me disse (conversávamos muito) que nos países anglo-saxónicos se lia muito mais não-ficção do que ficção. Como também eu hoje faço.


Saí da escola, deu-se o 25/4. Em conversa com alunos, perguntei pela professora.

— Ah, saneámo-la da biblioteca!

— Mas porquê? Ela e o marido até eram oposicionistas!

— Pois, mas quando queríamos trazer um livro, não deixava e mandava outro!

E perdi-lhe o rasto. Mas não a consciência da dívida de gratidão, que me levou a registar na dedicatória do meu primeiro romance, Do Lacrau e da Sua Picada:

“A duas das professoras a quem mais devo:

− Margarida Martins d’Aires Filipe, minha professora primária;

− Margarida de Carvalho, professora de Português na Escola Industrial e Comercial de Leiria.”


Pouco depois, foi a minha vez de lutar pela promoção da leitura. Bibliotecas de turmas, exposições orais de livros feitas pelos alunos, visitas de estudo à biblioteca municipal, a pé, tentando que se inscrevessem como leitores e requisitassem livros para depois falarem deles nas aulas…Batalhei muito na área.

Por vezes com a satisfação profissional que traziam os pequenos sucessos, por vezes citando mentalmente o profeta: Eu sou a voz que prega no deserto…

”Valeu a pena? /Tudo vale a pena se a alma não é pequena” (Fernando Pessoa).

quarta-feira, 3 de abril de 2024

“Viva la libertad, carajo!”

 “Viva la libertad, carajo!”

Berra MileI, o presidente da Argentina, no fim do seu discurso sobre as Malvinas.

Curiosa esta mudança de linguagem, de estilo, de ideais até: uma certa direita, que tradicionalmente enchia a boca com Deus, pátria, família, agora enche-a com o “carajo”.