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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Público deste blogue

Uma consulta às estatísticas das visualizações deste blogue surpreende-me: ultimamente, apesar de pouco ter 'postado', tem tido muitas visitas. E, maior das surpresas, provêm quase todas dos EUA!
Obrigado, amigos americanos! Só espero que a tradução do Google não faça de mim um jihadista!

A lição do estucador

Os dois estucadores, cada qual a trabalhar num lado da sala enorme, aperceberam-se da entrada de um dos encarregados. O mais velho, homem magro, seco, a avizinhar os cinquenta, continuou na sua labuta, com o rigor e a calma habituais. O mais novo, jovem recluso da Prisão-Escola de Leiria, deu em lançar frenético estuque para o tecto, a todo o instante gritava-me: -- Massa! Traz mais massa depressa! Massa! E eu corria a dar-lhe serventia, estranhando, na minha juventude, tanta energia súbita...
O encarregado começou a implicar com o mais velho. Que pusesse os olhos no jovem. Porque afinal ganhava bem mais. Para fazer menos. A conversa depressa azedou.
Às tantas, ouço ao velho estucador: -- A chaminé ainda fuma e ainda tenho batatas na despensa! 
Sem mais palavras, desceu do andaime, juntou as ferramentas e ala!
Também eu, que vou tendo batatas e lenha para o fogo, tenho a presunção de ser livre como esse estucador que nunca mais vi. Independente como ele. Com a arrogância de dispensar padrinhos, recusar empenhos, de não precisar das boas graças de nenhum merdas, dos muitos que infestam este país, que, por isso mesmo, fede insuportavelmente.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O morcego e a gripe das galinhas

Os media alvoroçavam o país. Era a pandemia de gripe. O governo decretou registo obrigatório nas juntas de freguesia das aves de capoeira, potenciais transmissores do vírus. Cidadãos apavorados chamavam as televisões, exigiam que toda a ave encontrada morta fosse analisada. Com o aparato protocolar. Na minha escola colocaram frascos de desinfectante, resmas de folhetos a alertar para a doença, a indicar procedimentos preventivos, arranjou-se uma sala para isolamento de aluno que fizesse atchim! até que chegassem técnicos do centro de saúde. Um colega abria as portas com toalhas de papel, recusando-se a tocar nos puxadores...
Pois com o país paranóico, um cidadão telefona em pânico para a protecção civil: tinha encontrado um morcego morto, exigia que fosse analisado. O responsável, não sabendo o que fazer, telefonou ao delegado de saúde.
-- Não posso fazer nada, vou a caminho do Algarve para umas férias...
-- Ó doutor, o homem não se cala...
-- Diga-lhe qualquer coisa...
-- Mas ele não sossega! Exige, por força, a presença do doutor!
-- Já lhe disse que não posso...
De repente, o responsável da protecção civil teve uma ideia, daquelas que nos fazem gritar como o sábio da antiguidade: Eureka!
-- Ó doutor, os morcegos não são aves!
-- É isso! Diga ao homenzinho que morcego não é ave, não apanha gripe das galinhas!
(História ouvida ao Nuno, em plena pandemia. Que me ocorreu agora ao ler um comentário  sobre morcegos.)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Lá vai o gajo!

— Para a semana, lá vai o gajo!
E lançou em voo cana, a imitar o avião em que partiria para a América. 
Pois um dia o gajo voltou, a férias com a família. Ele transmudado em adolescente gringo, no vestir, nos modos, nos interesses. Esquecera por completo as amizades de criança, olhava com desprezo para a nossa pobreza, que fora a sua até aos cinco anos. Naquele tempo, em que na aldeia as mulheres cobriam as tranças com lenços, e pouco mais descobriam que as mãos calejadas, as unhas sujas, as canelas peludas, os pés encardidos do pó dos caminhos, a irmã, mais velha, género boazona, deslumbrava a rapaziada com os seus decotes generosos, hot pants reduzidos a expor pernas depiladas, tentadoras coxas bronzeadas que enlouqueciam a rapaziada, a sonhar abri-las. (Ah, não tivessem arrancado as vinhas, e elas poderiam contar das inúmeras punhetas por lá batidas em sua honra por chusmas de rapazes augados!) O pai, que partira cavador, terceira classe feita, trajava agora como turista americano, sapatilhas e meias brancas, calções de cáqui, chapéu de palha, máquina fotográfica reflex a tiracolo. Contavam as velhas que o encontravam meditativo no cruzamento de caminhos, a tirar fotos a coisas sem jeito nenhum, ou a escrever em caderno que sempre o acompanhava. No adro da igreja os homens escutavam-no curiosos: na América, lia vários jornais por dia...
— Portugueses? Há lá jornais portugueses?
Haver, havia. Mas ele apenas lia os ingleses. Porque nos portugueses era só quem tinha nascido, quem tinha sido batizado, quem tinha morrido...
Crescia o espanto nos olhos dos ouvintes, também eles a suspirar por quem lies enviasse carta de chamada para largarem as enxadas e partirem para esse Eldorado, onde se entrava cavador analfabeto e se vivia como lorde letrado. Só eu duvidava de tal proficiência linguística, que na véspera ouvira a mulher, a única da família que se preservara barroa, a contar à minha mãe, após se assegurar de que não havia homens por perto: — Sabes como é que se diz saia em Inglês? Acena a minha mãe negativamente. E a americana, triunfante: — Cona! Pois vê tu, e ria perdidamente, que aquelas cabras andam com a cona à mostra!
É de ternura o sorriso com que recordo estes pequenos nadas da infância, paradigmas daquilo que fomos, daquilo que somos. Pobre país de ludíbrios, de mistificações, de mentiras, em que nos cobrimos de ridículo a fingir ser aquilo que jamais seremos, talvez para esquecer que a vida é cana lançada em breve voo, depois — Lá vai o gajo!  

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Bullying avant la lettre

O Tóino brinca pacífico à porta de casa. E eu a gritar-lhe, preparado para fugir ladeira acima:
-- Eh bucha! Não me apanhas, não me apanhas, gordo de merda!
Ele ainda me persegue. Mas depressa se cansa, volta atrás esbaforido, a vociferar ameaças:
-- Ah, quando te agarrar, eu faço, eu aconteço....
À noitinha a minha mãe manda-me fazer recado: -- Vais a casa da avó da Luz...
Tinha de passar pela casa do Tóino.
-- Não vou, tenho medo...
-- Medo de quê, se ainda é dia? Toca a andar, seu medricas! 
Cheguei a casa da minha avó ofegante, coração aos coices, da rápida corrida para evitar maus encontros. Mas no regresso, lusco-fusco, o malandro pegou-me de emboscada: 
-- Desta é que mas pagas!
E agarrava-me por uma orelha, esbofeteava-me, -- Vá, chama-me agora bucha!
Eu choramingava, entre lágrimas e ranho: -- Vou dizer à minha mãe... É tanto me contorci e berrei que consegui libertar-me. Apenas me afastei três pulos, -- Ranhoso, bucha, és só banhas, paneleiro de merda! -- nem sabia então o que era isso. E ele, a quem a fúria dava asas, quase a apanhar-me outra vez, perseguia-me até casa, a rosnar ameaças espumadas: -- Agora é que as levas a sério, dou-te coça que te vai servir de emenda!
A chinfrineira atrai à porta a minha mãe. -- Que guerra é essa, vamos lá a parar com isso!
-- É este bucha que me bateu e quer bater-me mais!
-- Não admito que me chames bucha!
-- Alguma lhe fizeste!
-- Eu? Vinha a passar de casa da avó, agarrou-me de surpresa, começou a bater-me...
-- Porque tu esta tarde chamaste-me nomes!
-- Eu? E para a minha mãe: -- Que eu seja ceguinho...
A minha mãe estava brava. Um marmanjo daqueles -- bucha, gordo, ia eu dizendo, já agarrado às saias dela -- a bater no seu filhinho, criança indefesa, "relezica", e sem quê nem porquê. 
-- Pois a tua mãe vai sabê-las e é agora!
Eis que as nossas mães ralham, a do Tóino que não aguenta mais ouvir a garotada a atentar-lhe o filho, que só quer brincar sossegado, a minha que nomes não fazem sangue nem marcas como as que tenho na cara: -- Ora veja-me lá o que o seu filho me fez ao garoto, acha bem?
-- E você acha bem que o seu lhe chame gordo?
-- Pois se o é!
Era, mas de doença! E doenças não se atiram à cara. 
-- Doença? Vossemecê até conta por aí: "O meu Tó é uma boquinha abençoada, come uma dúzia de sardinhas de cada vez!" 
-- Ora, o que come ou não come é comigo. Felizmente posso dar-lhas, não sou como umas e outras que têm de dividir uma sardinha pelos filhos.
-- Pobre, mas honrada, ouviu? E que o seu filho que não torne a bater no meu!
-- Ora, o seu que lhe não chame nomes! E fecha ruidosamente a porta de casa, farta da peixarada.
No caminho de casa, levo reprimenda forte: -- Ai de ti se eu sei que o voltas a provocar! Quem vai, vai, quem está, está.
-- Eu, mãe?  Ele é que me bate primeiro...
-- Se não podes com ele à unha, chega-lhe à pedrada! Não te venhas é queixar para casa!
Pois sim. Mal saía da escola, atirava a mala para cima da mesa, enchia a boca de torrões de açúcar e corria escadas abaixo antes que a minha mãe me impedisse. Ainda me gritava da janela: -- Onde vais? Já fizeste os trabalhos de casa? Merenda primeiro!
-- Vou brincar, depois faço-os. Não tenho fome, como depois...
Lá estava o bom do Tóino a brincar pachorrento à porta.
-- Eh gordo! Bucha de merda, paneleiro! Não me apanhas! Não me apanhas!
E ele outra vez a espumar ladeira acima: -- Vais ver a coça que te dou quando te agarrar! Ainda te faço pior do que ontem!
-- Ó mãe, o bucha quer bater-me outra vez! grito, ele olha em volta, detém-se por um instante, o bastante para me pôr a salvo em casa, galgando de pulo as escadas. 
-- Vieste a fugir de algum? E a minha mãe, desconfiada por me ver chegar bofes à boca, deita mão a verdasca justiceira.
-- Eu, mãe? Vim a correr para fazer os trabalhos da escola!

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O mistério da agricultura biológica

De todos os mistérios da vida moderna, o que mais me intriga é a moda da agricultura biológica. Nascido no campo, descendente de gerações de camponeses pobres, nunca consegui ver na agricultura o maná que agora apregoam. Antes sempre fiz minhas a as palavras daquele papa, Pio não sei quantos: "Há três maneiras de um homem se arruinar. Ao jogo, com as mulheres, com a agricultura. O meu pai escolheu a mais trabalhosa." (Já agora, o meu também. E morreu debaixo do tractor...) Depois, ouvi, li. Que a maior parte dos solos do nosso país não tem aptidão agrícola; que o relevo dificulta ou torna inviável a mecanização; que o clima, quase imprevisível, é uma ameaça permanente. Que sem financiamento...
Pois olho para a televisão e lá estão os profetas da novíssima revolução agrária — a agricultura biológica. Como os adeptos das novas religiões, não se contentam em acreditar, querem persuadir todos os outros de que há um mundo de oportunidades em cada recanto de urtigas, em cada silvado, em cada terra inculta. E trazem consigo um mundo de promessas, de certezas, numa área onde sempre predominou a incerteza da chuva, do Sol, das pragas, do escoamento dos produtos a preço compensador. 
Escuto-os com atenção. Um cavalheiro jovem, bem falante, cujas mãos negam ter alguma vez pegado num cabo de enxada, numa tesoura de poda — ou não estariam assim mimosas, esguias, de unhas irrepreensivelmente cuidadas, a indiciar cuidados de manicure. Três jovens senhoras, branquinhas de cera como ele, por cujas faces nunca passou o quente Suão, a agreste nortada, os ventos carregados de água que fustigam o rosto como agulhas. A agricultura é agora actividade de salão?
Fico à espera de respostas: que é preciso para uma família sobreviver nessa agricultura? Que rendimento pode esperar, por mês, por hectare, ou por cabeça? Como fazem para que o regadio chegue às culturas, como as defendem das pragas, dos coelhos, dos javalis, das geadas inesperadas, das vagas de calor, das semanas de chuva constante em que tudo apodrece? Pagam impostos? Os filhos frequentam a escola? De onde lhes vem o dinheiro para as alfaias, as reparações e manutenções mecânicas? Têm assalariados quando o trabalho urge e não conseguem dar conta do recado?
Muita conversa, nada que me esclareça. E começo a suspeitar de que o negócio possa ser outro. Vender o produto. Dar formação, fazer cursos, talvez para desempregados. Eventualmente, receber subsídios...
Agoiro. Se assim for, como ficaremos quando os subsídios acabarem, que lá diz o povo, não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe? Ou os mercados saturarem. Ou, faltos de rendimento decente e seguro, aqueles que agora pegam na enxada desistirem da salsa, da segurelha e da hortelã?
Mas isto são apenas cogitações de Velho do Restelo, desconfiado de milagres, farturas e facilidades. Que viveu sem electricidade, sem água canalizada, sem saneamento básico, sem papel higiénico, a comer um pouco de carne nos dias de festa, nesses em que talvez houvesse gasosa ou laranjada para as crianças. Que não gostaria nada, mesmo nada, de voltar a viver nessa penúria cruel. E que não consegue imaginar como sobreviver, como sustentar família, com o produto da venda de ramos de ervas aromáticas, umas alfaces, couves, algumas cebolas ou tomates, ou batatas, conforme a estação. 
Também eu defendo a produção nacional, o cultivo dos campos, a ocupação das gentes desempregadas. Poucas coisas me agradam tanto como o amanho da terra. Que não dá férias, nem dias de descanso. Que se não compadece com idealizações. Por isso me irritam os vendedores de ilusões. Que parece não dizerem aos candidatos a agricultor que o trabalho no campo é duro, ingrato, fedorento, porco, estraga as mãos, envelhece precocemente — e todo o investimento de uma vida pode ser perdido numa única noite de temporal, ou num desses incêndios em que o nosso Verão é pródigo.
FOTO: dez anos atrás, na sacha das batatas. Pois este belo batatal foi completamente destruído pelas geadas poucos dias depois. Assim é a agricultura...