[Dois
anos atrás
sofri a agonia da minha mãe.
O texto que se segue é
um
dos registos da época,
amputado de fragmentos demasiado pessoais.]
Telefonam-me
do lar: a minha mãe
vai a caminho do hospital. Precipito-me, chego ainda antes dos
bombeiros. Fazemos o check in, passamos à
triagem.
O enfermeiro, moço,
preenche formulário,
desinteressado das respostas, coloca-o em placard junto à
porta
de um dos dois gabinetes médicos
de triagem, e começa
a espera. Ninguém
parece ter pressa, nem as enfermeiras, seguras e empertigadas que
andam para trás
e para a frente como se estivessem atarefadas, nem as auxiliares que
se juntam em grupo, galhofeiras, nem os raros médicos,
aparentemente desocupados, todos indiferentes ao sofrimento das
pessoas que agonizam no corredor degradado, na acanhada sala de
espera tão
apinhada de macas que ao movimentá-las
chocam entre si e provocam gritos de dor a jovem acidentado, cabeça
envolta em ligadura ensanguentada, há
horas
ali, esquecido por todos excepto por senhora discreta, elegante —
Olha
a tua professora de Inglês,
diz mãe
para miúdo
que passava sem a ver, ou porque, como os outros miúdos,
há
muito
deixou de conhecer as professoras, ou porque a febre lhe embotou o
discernimento.
Passam
sonolentas as horas, chegámos
pelas quatro da tarde, são
quase duas da manhã,
cabeceio com sono, imagino-me a mim mesmo estendido numa daquelas
macas, agonizante talvez, esquecido por todos de que estamos nas
Urgências,
quem o diria com tamanha demora, com tanta calma dos profissionais.
Em que pensarão
os doentes, a sofrer silenciosamente, apenas o ferido na cabeça
chora baixinho? Talvez, mais do que viver ou morrer, desejem que
aquele purgatório
acabe depressa, arrependidos de terem vindo ao hospital, melhor
morrer em casa, a sós
que seja, que naquela sala de espera, de solidão
e indiferença
atrozes.
A
minha mãe
chama-me, contorno as macas, desvio o olhar dos rostos marcados pela
fealdade da doença
e da velhice, assim serei eu, assim seremos todos um
dia,
uns de olhos fechados, outros de olhar vazio fitando o branco sujo da
parede, Como está
agora?
Abana a cabeça
com indiferença,
sussurra, a voz minada pela fraqueza e quase inaudível
devido à
traqueostomia:
— É
tarde
para ti, vai-te embora! É
tarde,
sim, amanhã
tenho
aulas às
oito, e para além
delas, que são
o meu trabalho, as inevitáveis
aulas de substituição
dos jovens professores que incapazes de aguentar as suas turmas se
baldam, deixando aos velhotes como eu o inferno de aguentar na sala
os seus alunos, sem plano de aula, sem perceber nada das respectivas
disciplinas.
Não
a abandono, há
um
ano e meio que andamos os dois nesta vida, peregrinando de hospital
em hospital, de urgência
em urgência.
Eis que finalmente nos chamam, primeiro para a triagem, depois para a
consulta,
é
ainda
preciso
aguardar pelo resultado dos exames, das análises,
que
finalmente chegam.
— Está
tudo
bem.
— Mas,
doutor, e recordo o historial clínico
da minha mãe,
Veja o estado em que está!
— Como
se sente, dona Isabel?
— Mal,
sussurra, e eu falo novamente da traqueostomia, dos meses entre a
vida e a morte nos cuidados intensivos de Santa Maria após
cirurgia de quatro horas, uma das quais com o coração
de fora, no gelo, a derrame da aorta pleural, a infecção
por bactérias
resistentes aos antibióticos...
— A
sua mãe
tem oitenta anos...
— E
o Manuel de Oliveira mais
de cem...
— As
pessoas não
são
iguais.
E
termina a consulta com a recomendação
de que beba muita água.
Tanto sofrimento, da minha mãe
e algum meu, tantas
horas de hospital, para receitar mais água?
Quantas
urgências,
quantos hospitais conheci já?
Em quantas não
passámos
horas infindas, de espera insuportável?
Leiria, em pavilhão
pré-fabricado,
apesar de o hospital ser novo. Ampla sala de espera, pistas de cor,
amarela, vermelha, azul, consoante a gravidade diagnosticada na
triagem, feita por jovem enfermeira na galhofa com os maqueiros, sem
prestar atenção
às
respostas que eu lhe dava; Alcobaça,
pequeno hospital da Misericórdia,
tão
pouco misericordioso como os outros, a mesma espera, as mesmas macas
amontoadas em qualquer espaço
livre, as enfermeiras divertidas a verem no computador as fotos das
férias
de uma delas; Santa Maria, sentado no chão
do corredor por falta de cadeiras, com a Ana e a Sofia, na penumbra,
à
espera
que por ali passasse o cirurgião
com informações
da operação
ao aneurisma da aorta, depois meses à
porta
dos cuidados intensivos, de cheiro agoniativo, entontecedor, na
esperança
de fugazmente poder ver a minha mãe
ligada à
maquina,
ciente de que podia ser a última,
a piorar de dia para dia, – Mãe,
sou o Zé,
conhece-me? Vago gesto afirmativo, talvez apenas com o olhar, e eu
falo, falo, sempre as mesmas conversas, invento, minto, mesmo que
pareça
ter adormecido, fico até
ter
de sair a mando da enfermeira ou porque se esgotaram os breves
minutos da visita, ou porque soa o alarme de uma das máquinas,
ou porque a minha mãe
está
novamente
engasgada com muco, a precisar de ser aspirada...
Horas
de viagem, horas de espera, para trazer algum alento: —
Mãe,
não
se deixe morrer, precisamos de si! E por resposta, aceno de mão
a revelar desinteresse por tudo, vida e morte...
Tubo
no nariz, tubo na garganta trasqueotomizada, máscara
de oxigénio,
mostradores a indicarem perigosa falta de oxigénio
no sangue, ou ritmo cardíaco,
ou tensão
arterial elevada, ou sei lá
que
mais, naqueles aparelhos que tento decifrar, como tento decifrar a
conversa enigmática
das enfermeiras, talvez não
saibam, apenas cumpram as indicações
dos médicos,
e estes também
nada sabem, há
que
esperar...
Telefona-me
a dona do lar com rodeios. Interrompo-a: a minha mãe
morreu? Confirma.
Acrescenta
pormenores. Estava de pé,
agarrada ao lavatório. Caiu, deitaram-na na cama, vomitou.
Terá
sido
como conta, suponho. Nenhum de nós
lá
estava.
E o médico
está
de
férias,
virá
à noite
para passar a certidão
de óbito.
(…)
Caminhamos silenciosos atrás
do carro funerário,
quase um quilómetro
e a subir, o calor aperta, lembro-me de que no funeral do meu pai,
dezanove anos antes, o padre rezava altas vozes o padre-nosso. No
cemitério
a emoção
vai e vem, só
quero
que tudo acabe depressa, sofri a agonia durante ano e meio, sofro a
sua morte há
já
três
dias, anseio por alívio,
esquecimento. Censuro o meu egoísmo,
recordo que de cada vez que peregrinei para as Urgências
quase recriminava mentalmente a minha mãe
por me fazer sofrer, por perturbar a minha rotina com as suas doenças
que os médicos
não
diagnosticavam, ou diagnosticavam erradamente, minimizando-as, e eu
então
quase lhes pedia desculpa pelo incómodo,
e agradecia veementemente, em vez de censurar a ignorância
ou o desleixo com que a observavam... Acreditava neles porque era o
que queria, o que me convinha, para que tudo continuasse na mesma...
Afinal, quem tinha razão
era a minha mãe:
Está
tudo
a acabar! É
o
fim... E repetia com a certeza de que Julho é
fatal
para a nossa família:
Julho é
ladrão...Em
Julho acaba tudo!
FOTOS: no lar, com a Sofia e eu, a 16 de Junho. Morreu a 22 do mês seguinte.
FOTOS: no lar, com a Sofia e eu, a 16 de Junho. Morreu a 22 do mês seguinte.
2 comentários:
Bom dia,
Este seu texto é impressionante. Percebo muito bem a mistura de sentimentos, a angústia. Lê-lo é viver aquilo por que passou.
Julho é um mês que leva uns mas que traz outros porque a vida sempre assim é, diversa. Ingrata, por vezes, generosa outras.
Obrigada por este seu texto, tão bem escrito, tão tocante.
Um abraço.
Muito obrigado pelo comentário. É só o que consigo dizer, o mais está no texto que teve a gentileza de comentar. Infelizmente sou assim: ponho tudo o que tenho no que escrevo, não me sobra nada depois...
Sem querer invadir a sua privacidade, gostaria de lhe oferecer um dos meus romances para, caso tenha tempo e paciência, o ler. Não precisa de o fazer, nem sequer de o comentar. Digo isto porque as pessoas estranham esta minha maneira de proceder e preciso de me estar sempre a explicar, o que é fastidioso. Se aceitar, pode fornecer-me um endereço de correio, mesmo de algum conhecido, para onde o possa enviar?
Jccatarino@hotmail.com
Muito obrigado.
Enviar um comentário