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domingo, 11 de maio de 2025

Apocalipse

Em criança, apavoravam-me os pequenos barulhos da noite aldeã — o soalho que estalava, o ténue zumbido do contador da electricidade, as correrias e brigas dos ratos no sótão, o pio agoirento de coruja... e, pior, o receio de aparições do Diabo, sempre tentador e atentador, ou fantasmas, almas penadas, espíritos de defuntos que, faltos de ocupação, podiam surgir a qualquer momento no escuro.

Mas, mais do que os medos trazidos pela noite, alimentados pelas histórias de garotos, beatas, padre na missa, era o fim do Mundo que me aterrorizava. O fim de tudo, certamente após tormentos cruéis do Nosso Pai dos Céus, lá em cima sempre de olho em nós, sempre zangado, sempre a prometer, via profetas, castigo terrível e derradeiro. Era ele quem ralhava no trovão, quem escrevia no céu o aviso do Arco da Velha Aliança — já havia destruído uma vez o Mundo pela água, da próxima seria com o fogo, e isto por via dos nossos pecados, que eram tantos: um distraído padre-nosso ao rezar o terço, pequenas patifarias omitidas por vergonha na confissão, como ter espreitado rapariga que se aliviava em tosca retrete, ou brincadeira durante o Santo Sacrifício da Missa, enquanto o sacerdote verberava o povo ímpio — a vindimar ao domingo! Ah, certamente a mesma gente que fugia à côngrua, (e o senhor prior desesperava por trocar a lambreta por carro), que não mandava os filhos à catequese, talvez hereges, ateus, meio caminho andado para o maldito comunismo, que tanto entristece Nossa Senhora, que prometeu em Fátima o milagre da conversão da Santa Rússia! 

Eu lia sofregamente. Tudo. O jornal, na loja; as folhas arrancadas que embrulhavam o peixe, os fragmentos espetados em pregos das retretes, e amiúde encontrava evidências da proximidade do Apocalipse, agora pelo fogo nuclear, desencadeado pelo Homem, que assim ajudaria o Criador a arrasar definitivamente a Criação e as suas criaturas, que sempre detestou, com excepção de uns tantos graxas como Abraão, capazes até de lhe sacrificarem o filho primogénito para permanecerem nas suas boas graças.

Aí pelos meus treze anos, já a estudar em Leiria, havia na casa onde estava hospedado vários exemplares das Selecções do Reader’s Digest e por elas fiquei a saber que o Mundo era, afinal, o Universo, uma miríade de galáxias, uma infinidade de estrelas, tudo nascido no Big Bang, tudo condenado a perecer num Big Crunch ou em qualquer outra catástrofe cósmica, dependendo da massa do Universo — o velho fim do Mundo, inexorável, já não  planetário, mas cósmico, já não causado pela fúria divina, mas pelos ditames da matéria!

Os anos e as leituras não dissiparam o cenário pessimista da infância. As lendas, a beataria, a crendice cederam perante a linguagem da ciência e as extraordinárias descobertas do último século, mas o facto essencial permanece: o Universo, surgido do Nada, a ele voltará. É certo que muito antes terei eu desaparecido, a terra terá sido incinerada pelo Sol quando este, esgotado o hidrogénio que agora o alimenta, crescer até à órbita de Marte, a Via Láctea terá colidido com Andrómeda, tudo aquilo que hoje conhecemos seria irreconhecível se cá voltássemos. E não encontraríamos nenhuma linha dos meus escritos, nem sequer nenhum vestígio  das obras dos maiores criadores da humanidade, nem um simples átomo que atestasse a sua existência num passado distante — o nosso presente.

Sim, esse fim do Mundo ocorrerá, tudo o indica, num futuro longínquo. Só que passado, presente e futuro são referências ao Tempo, e eu, apesar de muito ter procurado, continuo sem saber o que o Tempo é. Ou se É.