Primeiro surgiram os nomes. Exigiram-nos as coisas, todas diferentes mesmo quando aparentavam ser iguais, as pessoas, as ideias que se iam formando. Depois, os verbos. Afinal, o Homem ou ESTAVA ou FAZIA. Bicho irrequieto, tudo eram estados ou acções: bebé dorme, chefe caça. Podia construir frases: Chefe caça urso; urso caça chefe.
Animal complicado, precisava de distinguir coisas, seres da mesma espécie pelos pormenores. Inventou os adjectivos e estragou a linguagem. Grande chefe caça urso pardo coxo; rapaz zarolho ama rapariga linda...
O mais, declinações e conjunções, artigos e preposições, advérbios e interjeições veio por acréscimo, como vieram tempo e modo e aspecto. A língua complicou-se de tal forma que deixou de depender da realidade. Passou a construí-la. As palavras, que antes reportavam o mundo, tornaram-se barreira à sua compreensão, deturpando, mistificando. De tal forma que a ciência, quando foi inventada, mais do que as palavras, recorreu aos números, mais do que à linguagem recorreu à matemática, desconfiada dos artifícios retóricos construídos com palavras, os quais permitem defender uma ideia e a sua contrária.
Pior. Se no início dos tempos, quando o chefe falava, o ouviam em silêncio religioso, não raro de costas, hoje, com o falajar constante e vazio, a palavra perdeu a sua antiga magia.
Chefe manda caçar urso.
Porquê urso e não bisonte?
Que mal lhe fez o urso?
Ele quer é a pele para a mulher!
Urso é perigoso. Prefiro caçar coelhos.
Caçar está errado. Não se deve fazer mal aos animais.
Nem os nomes escaparam à banalização. Amigo é quem pede amizade no Facebook. Casa, algo que pertence ao banco. Amor, um vocativo a substituir o nome próprio:
— Amor, vai despejar o lixo!
Ou mera palavra melada que como a serpente adorável carrega em si o veneno da mentira,
— Amor, chego tarde, tenho uma reunião que vai demorar...Sim, conselho de turma, acaba tarde, está lá o Fulano, já te falei desse chato, nunca se cala, toda a gente a querer sair e ele a exigir que cada peido que dá fique em acta...
Ou desculpa para a violência doméstica, quando por ela se perdoam os maus-tratos de hoje, os mesmos que se sofrerão amanhã,
— É porque te amo!
e até desculpa em tribunal os desfalques,
— A ré está absolvida, pode ir em paz...
— Sr. Dr. Juiz, e os duzentos mil euros da autarquia?
Pois podem dizer-lhes adeus, afinal eram dinheiros públicos e a escrivã privatizou-os por amor, para oferecer carro topo-de-gama ao namorado que ameaçava deixá-la!