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segunda-feira, 28 de abril de 2025

Arrependimento

 Portei-me mal ao telefone. Mas detesto que me liguem a pretexto de me oferecerem descontos, os quais, invariavelmente, obrigam a novas despesas. E estava a comer. Primeiro, pedi, em vão, que a telefonista se despachasse, explicitando rápida e claramente qual o assunto. Depois, irritei-me com o mau português: “eu quero LHE informar…" Impaciente, corrigi-a: “eu quero informá-lo…”

Desligou a chamada.

E eu fiquei arrependido por ter tratado mal pessoa que, obviamente sem formação e ignorando as regras básicas da sintaxe do Português Europeu, tem de aguentar um emprego daqueles. 

sábado, 19 de abril de 2025

Livros aos montes

Estudava então em Leiria, pouco, e estava alojado em casa modesta, velha, escura, tristonha, de uma senhora divorciada que recebia estudantes como hóspedes — sim, ao contrário do que hoje se diz por aí, o divórcio existia antes do 25 de Abril, embora se não  aplicasse aos casamentos religiosos. 

Adiante. O que interessa é que, sobre o soalho, ao fundo de um corredor, amontoavam-se centenas de livros, sem qualquer ordem. Para um miúdo viciado na leitura, afastado da família, num meio completamente estranho, foi um maná dos céus. Devorava um ou dois por dia, misturando Júlio Dinis com Caryl Chessman, o condenado à morte que na cela se tornou escritor, Thor Heyerdahl e a sua Kon-Tiki, Júlio Verne, Dumas, Salgari, Defoe, histórias policiais e de terror com os livros de cowboys e o Major Alvega...

Os dias voavam, as saudades não doíam tanto... 

Naquele primeiro período, os resultados escolares não foram brilhantes.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Em Abril,

Em Abril, queimou a velha (ou o velho) o carro e o carril*

E o que sobrou, em Maio o queimou.

* Chambaril, noutra versão.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Invernias

Venho de outro tempo, de outro lugar, de um mundo já desaparecido. E, sem que ninguém mo peça, dou testemunho desse tempo, desse lugar, desse mundo, por exemplo, no meu romance Entre Cós e Alpedriz. 

“Oo geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tamtos malles, nem foi quinhoeiro de taaes padecimentos!” (Fernão Lopes, Crónica d’el-rei D. Joham I)


“Nem mesmo turvados pelo álcool conseguem imaginar esses tempos que um dia virão e que poucos deles conhecerão, tempos em que a aldeia terá telefones, água canalizada, esgotos, estradas e caminhos alcatroados. Não haverá então fome em Portugal, mas outros problemas surgirão, fazendo talvez os seus netos e bisnetos desejarem ter vivido no tempo dos avós, em que éramos, disse-se depois, pobrezinhos, mas honrados e felizes. É sabido, ninguém está bem com o bem que tem. Fiquemos, portanto, naquele Inverno terrível, como poucos terá havido antes ou depois, desde que os Montes são habitados.

Chuva e vento, vento, chuva e frio. Gemia água a terra, rebentaram as nascentes, os regatos cresceram até serem novamente rios, submergiram as pontes, matando mesmo a filha do (…)

E um dia, inevitáveis como o Inverno que a todos atormentava, apareceram os “pexins”. Há meses que não podiam pescar, a fome apertava. E apertava-se a garganta dos camponeses ao verem aqueles homens valentes, que não receavam mar e temporais, pedindo esmola por amor de Deus. Os cavadores, também eles impedidos pelo mau tempo de ganhar o sustento, comoviam-se e cada um dava o que podia: um punhado de batatas miúdas, das mesmas que a mulher cozia para os porcos, uma tira de toucinho, uma ou outra maçã ou passas de uva, figos secos, uma fatia de broa e, sempre, um copo de água-pé ou um rijo mata-bicho, aquecendo o corpo e queimando as tristezas, que, bem o sabemos, nem dão de comer nem pagam dívidas.

Então, abrigados nas adegas, ouviam os pescadores horas e horas a fio enquanto fora a chuva batia nas paredes, jorrava dos beirados, corria pelas ruas, fazia transbordar as regueiras, transformando tudo num mar de água. As conversas corriam soturnas como o tempo, recordando os entes queridos levados pelo mar na longínqua Terra Nova, na costa de Peniche, às vezes até junto à Nazaré, mesmo à vista das famílias. E partiam, as ceroulas de flanela arregaçadas pelas canelas, os pés descalços, por poças e atalhos, mendigando pelas aldeias que atravessavam, guardando nos sacos de serapilheira que carregavam às costas a pobre dádiva dos pobres, a quem também escasseava o sustento para si próprios e para os seus; partiam, levando com que mitigar momentaneamente a fome à família enquanto os homens da terra permaneciam nas adegas e arribanas ou iam para a taberna beber fiado.

Como pregoeiro do mau tempo, entoando na gaita-de-beiços a triste melodia do inverno, chegou o amola-tesouras, tentando atrair freguesas com o mesmo assobio com que na Primavera se oferecia para capar os porcos, os mesmos alforges na bicicleta, de onde agora extraía um esmeril para afiar facas e tesouras, alicate e arame fino para consertar as varetas de chapéus de chuva. Também para o galego os tempos estavam maus, calcorreando estradas alagadas e caminhos de lama, a bicicleta à mão, sempre debaixo de chuva inclemente, para ganhar um cruzado aqui, outro ali.

Chegou o cesteiro, instalando-se ora numa adega ora noutra, e habilidosamente entrelaçava vergas fazendo cestos onde as camponesas transportariam ovos ou fruta, poceiros para as uvas na vindima, poceiras para a fruta que venderiam nas praças de Alcobaça ou de Pataias, poceirões onde os burros carregariam o esterco para as hortas quando o tempo levantasse. Ao contrário da formiga, trabalhava de Inverno, mas só receberia mais tarde, talvez apenas no final do Outono: — Pago-te quando vender um casco de vinho..., ambos sabendo que o mais difícil é receber, seja a jorna ganha seja o vinho vendido."

In Entre Cós e Alpedriz

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Coisas de mau gosto

Os mortos não fazem anos. Para eles, o tempo acabou.

E é macabro dizer que fulano  “ faria hoje x anos” — em que estado? 

Ele (ou ela) gostaria de os fazer? E de viver, sabendo mortos todos os familiares, amigos, conhecidos, isto se para tal tivesse ainda lucidez?

Lembro-me, a propósito, de uma resposta de Mário Soares quando uma dona lhe dizia algo como ‘que bonito ter oitenta anos’:

— Para si, que os não tem.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Inteletuais

 Sou,  como é sabido, opositor ao novo acordo ortográfico, que me recuso a aceitar. Mas, mesmo na lógica interna desse acordo, as consoantes  oclusivas devem ser grafadas, i.e., escritas, sempre que são articuladas, i.e., pronunciadas. Por exemplo, 

“É um faCto” e não “É um fato”.

“É um facto que mandei fazer um fato ao alfaiate”.

Assim, e sem ter ouvido o respectivo arrazoado, sou levado a pensar que para a televisão este cavalheiro, que nem sei quem seja, não é um inteCtual que se posiciona inteleCtualmente, mas sim um “inteletual“ que se posiciona “inteletualmente”.


Cacofonia

 Cacofonias


Ouve-se frequentemente dizer “passe a cacofonia“ em situações em que, obviamente, se pretende dizer “passe a redundância“, “passe o pleonasmo”, etc.

 Como exemplo de cacofonia, veja-se esta de Quim Barreiros, um mestre na sua exploração: “…vaca, galo…“(vá cag…). Ou, num registo erudito,  este exemplo de cacofonia em A Capital, de Eça de Queirós: “nunca cauda…“ (Ca-cau).

É com este sentido que a palavra está dicionarizada no Priberam:

cacofonia

nome feminino

Som desagradável ou palavra obscena resultante da união de sílabas ou palavras diferentes. = CACÓFATO, CACÓFATON ≠ EUFONIA


Origem etimológica:grego kakofonía, -as, som desagradável.


"cacofonia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/cacofonia.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

A Idade de Ouro (reposição)

 Longe vão os meus tempos de pregador. Hoje, sem pretender converter, nem sequer convencer, as polémicas não me motivam como antigamente e fico-me pela contra-argumentação, na esperança vã de que os factos que avanço levem os meus opositores a considerar, tenuamente que seja, que podem não estar tão carregados de razão como se julgam.

Mas, assim mo mostra a vida e confirma a realidade facebookana, esgrimir argumentos é inútil contra a fé, seja ela a religiosa, seja a das causas que se vão construindo sob os meus olhos cépticos: agricultura ‘biológica’, medicinas alternativas, acupunctura, vegetarianismo, alimentos milagrosos que até curam o cancro e se acaso fracassam é porque ou o doente os descobriu demasiado tarde, ou porque os não consumiu da forma adequada, ou com fé suficiente, atitudes anti-científicas que rejeitam as vacinas, desdenham dos medicamentos, põem em causa evidências como a da Terra ser esférica, ou o homem ter descido na Lua, embora, estranhamente, pareçam aceitar que algumas das nossas naves já viajam para fora do sistema solar...

Será a saudade do passado que me leva a considerar muito mais poética a ignorância meio século atrás, com espíritos e espiritistas, almas assombradas e exorcistas, crendices que me deixavam apavorado por ter ingerido cabelo, a medo que se transformasse no meu interior em cobra, a benzer-me para afastar Satanás, a mijar nas feridas para as desinfectar?

Certamente. Mas a ignorância de antanho resultava da falta de informação. A de hoje envolve sobretudo gente dos meios urbanos, com estudos, que se enreda em argumentos e justificações palavrosas, ignorando uns factos, deturpando outros segundo as suas conveniências, não raro sustentando as suas crenças, inevitavelmente assertivas, em “estudos” facilmente desmentíveis.

Por exemplo, partem de factos inegáveis, como os efeitos secundários dos medicamentos, ou os perigos da utilização dos pesticidas agrícolas, para desencadearem campanhas contra o uso de uns e outros, não querendo ver, pois a fé é cega, que o nosso bem-estar depende crucialmente da utilização correcta de uns e de outros.

Sou velho. Já vivi mais do que o meu pai, talvez tanto como o meu avô Cipriano. E lembro-me muito bem, que as recordações do passado são as que a memória melhor retém, de como era a vida meio século atrás, num Portugal pré-científico, subnutrido e cheio de doenças. Infantis, que as vacinas evitaram. Crónicas e incapacitantes que os medicamentos curaram  ou tornaram suportáveis. Em que o cancro — sim, comia-se tudo biológico, mas morria-se igualmente de cancro — se tratava pondo-lhe ovos cozidos por cima, para que o cancro os comesse em vez do doente. E com rezas, que pouco mais havia.

Essa época, com escasso conhecimento científico, quase sem remédios (lembro-me das sulfamidas, da tintura de iodo, do melhoral, mais tarde do Vick Vaporub), em que apenas comia ‘biológico’ do que havia, quando o havia, não foi uma Idade de Ouro. Foi uma idade de sofrimento. Onde, como diz Álvaro de Campos, eu era feliz e ninguém estava morto. Sobretudo por isso.