Por isso, ao contrário de outros que pareciam tudo fazer para serem detidos e na prisão ganharem o estatuto de heróis — ou descobrirem que ainda não estavam devidamente preparados politicamente como filhos do Povo para resistir a duas semanas de tortura do sono — eu evitava ser preso, arriscava o necessário, mas não mais, dissimulava-me constantemente, encorajado pelo meu controleiro, um clandestino.
Mas no primeiro de Maio de 1973 tinha o pressentimento, estava firmemente convencido de que seria finalmente preso — ou morto. Tirei do quarto todo o material comprometedor, livros, panfletos, equipamento artesanal com que os reproduzia e pu-lo a salvo em casa de amiga. Logo de manhã, como cristão que se prepara para a morte, assisti à nossa missa comunista, no cemitério junto à campa de Ribeiro dos Santos, o primeiro mártir da nossa causa.
Saldanha Sanches fez belíssimo discurso, comovente até às lágrimas: também nós devíamos estar prontos a dar naquela tarde as nossas vidas pela revolução.
Como condenado que vê os seus dias chegarem ao termo e se desforra na última refeição, gastei dinheiro que deveria durar mais uma semana em almoço em restaurante melhorzinho, bebi até -- luxo a que de ordinário me não podia dar — uma cerveja, Carlsberg.
E à hora da manif, segui para o Rossio, pronto para o que desse e viesse. Habituado a manifestações com escassas dezenas de estudantes, sempre os mesmos, exceptuando aqueles que iam sendo presos ou desertavam da causa, assombrou-me ver a praça apinhada de gente, povo!, esse povo em nome de quem há tanto falava, que procurava agitar, trazer à rua, amotinar contra o regime. Do alto de um edifício, por cima do Diário de Notícias, a Pide (quem mais poderia ser?) filmava-nos ostensivamente, ameaçadoramente, e os populares faziam-lhe manguitos destemidos. Senti ali começar a revolução almejada.
Subitamente, a polícia atacou com canhões de água, empurrando-nos dali para fora, rua do Ouro abaixo. Avistei o meu controleiro, ali, à luz do dia: Vamos voltar para o Rossio e tomar a praça!
Por todo o lado, cacetadas, espancamentos da polícia de choque, o capitão Maltês a comandar. Todos os acessos estavam barrados. Entrei em autocarro apinhado, que havia de entrar no Rossio, fiz comício no interior para trabalhadores assustados comigo, com a polícia que, fora, em todos, em tudo, batia. Vejam, quem trabalha leva porrada! Viva o primeiro de Maio! O primeiro de Maio é vermelho!, mas o condutor recusou abrir as portas dentro da praça, certamente para a polícia não entrar.
Batemo-nos noite fora. Escapei. Pouco depois, denunciado, abandonei os estudos e a capital, fui viver para a Marinha Grande, a trabalhar em Leiria nas obras primeiro, como operário de plásticos depois. Participei na organização do primeiro de Maio vermelho de 1974, na Praça Stefens, lição para os “revisas”, que a tal há muito se não atreviam.
Deu-se o 25 de Abril, quando cheguei naquela manhã, pronto para a luta, os soldados que nos deveriam reprimir tinham cravos vermelhos nos tapa-chamas das G3, o ambiente era de festa, como se a guerra colonial tivesse acabado, os amanhãs já cantassem...
E nunca mais comemorei nas ruas o primeiro de Maio.