Soprou-me o vento sobre o barro, assim fez o meu ser, pés colados à terra, cabeça acima das nuvens. Cozeu-me à sua imagem — irascível, instável, amigo de larguezas e de solidões. Deu-me por brinquedos imaginação e argila para os moldar — quase sempre aviões, como os que sobrevoavam as vinhas por onde corria descalço, braços abertos como asas tentando elevar-me da mediocridade terrena, e embalado nas descidas pulava barreiras e silvados, e por instantes também eu voava, não tão alto como os jactos que traçavam no céu linhas brancas, nem como os falcões que nele planavam, nem sequer como as esquivas perdizes de voo curto — era antes esvoaçar de melro de moita em moita, coisa de metros, depois, o preço de cada sonho: trambolhão na realidade, amortecido pela terra mole sempre amiga, para outra vez me levantar e acelerar ladeira abaixo, outra ribanceira, outro salto, outra queda...
No seu soprar constante o vento levou-me os cabelos um por um, metaforizou as minhas ribanceiras, os meus silvados, os meus voos, só preservou a veleidade de querer elevar-me acima da terra de que me fez, isolando-me daqueles que por todo o lado protestam, resmungam, vociferam, insultam, ameaçam.
Torno-me suspeito pelo silêncio — a minha linguagem é outra. Oiço as vozes, escuto as raivas, misturo-as, observo as vidas, confundo-as, depois moldo-as no barro da minha escrita, sopro-lhes a vida, na esperança de que se não esboroem tão depressa como o pó de que o vento me fez...
5 comentários:
Que texto tão bonito, quase alado.
Escutar, ouvir, observar são grandes qualidades. Mas a maior parte das pessoas quer viver depressa, no meio do barulho, faz-lhes impressão parar, o silêncio...
Obrigado a ambas pela visita e pelos comentários.
Um Jeito Manso: quem me dera conseguir exprimir-me com homéricas palavras aladas!
Cristina Torrão: o que mais me incomoda no barulho actual é o desperdício -- de energia, de tempo, de felicidade. Suponho que aí, na Alemanha, se não ouça um coro de protestos e de rabulices de manhã à noite. Por todo o lado. Não é o protesto da revolta; é o comentar, dissertar o que já foi comentado, dissertado pelos comentadores que infestam os canais televisivos, reduzindo a vida à política e ao futebol.
Rabugices e não rabulices. Aí o corrector ortográfico, que me muda o texto!
Sim, os portugueses gostam de "mastigar" os assuntos. Nota-se, até, no Telejornal, que vejo, de vez em quando, na RTP-internacional. Quantas vezes repetem eles as informações, algumas, sem grande importância?
É verdade que na Alemanha não há tanta "dissertação". Mas há igualmente muito ruído e desperdício, numa sociedade extremamente consumista.
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