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terça-feira, 3 de novembro de 2015

Novembro de 1975

Tinha sido destacado com alguns camaradas, quase todos milicianos, para dar uma recruta em Santa Margarida, campo militar em lugar ermo, com longa avenida entre numerosos quartéis, cada qual com a sua autonomia. Logo numa das primeiras noites, estava eu de sargento de dia, e chamam-me à caserna dos recrutas. Um dos “prontos”, soldados veteranos, de alcunha o Portimão, bêbedo, G3 na mão, ameaçava os moços, a extorquir-lhes dinheiro, bebidas, enchidos, chocolates. Cheguei-me às boas, a tentar levá-lo dali para fora. Recusou sair: queria beber, e, dizia, os recrutas tinham bagaço escondido nos armários.

-- Venha então daí, e peguei-lhe amigavelmente no braço, vamos ao bar, que lhe pago um copo.

Intempestivamente, libertou-se com um safanão, apontou-me a G3 à cara, a dois passos de distância, meteu bala na câmara, grunhiu: -- Sei usar esta merda!

Nem me apercebi do perigo que corria. Inútil a Walter de serviço, no coldre fechado e sem balas. Pistola e braçadeira eram meros adereços da função.

Sem pensar, avancei para ele, desviei o cano da arma, -- Oiça lá, meu sacana. É assim que me agradece por o safar das porradas quando está desenfiado do serviço, como aconteceu ainda no mês passado, você a dormir na cama e o posto de sentinela vazio?

-- Isso não é agora para aqui chamado, contrapôs, aparentemente desorientado.

-- Aí não é? Eu faço-lhe bem e você aponta-me essa merda? É assim que me agradece?

Por entre palavrões e ameaças afastou-se e refugiou-se no quarto.

Queixa apresentada na manhã seguinte, o comandante do destacamento, um major que havia chefiado a descolonização de São Tomé e Príncipe, chamou-o ao seu gabinete na minha presença. E o Portimão, que tinha cursado com distinção a escola de malandragem, desfez-se em falinhas mansas, em tom humilde, desculpou-se, tinha sido do vinho, não tornou a beber...

O major, que acreditava na bondade humana, no arrependimento e na capacidade de regeneração do ser humano, despachou-o com simples raspanete.

E o Portimão continuou connosco.

Nessa semana, os recrutas, em plenário dinamizado pelos SUV (Soldados Unidos Vencerão!), aprovaram várias medidas revolucionárias: não rastejar na pista de técnica de combate porque o chão estava lamacento, e não fazer serviços.

O bom do major, levando-me a passear abraçado pela parada sob olhares escarninhos dos recrutas, explicava-me: havia que respeitar a decisão democrática do plenário, mas era preciso garantir a segurança do quartel. Afinal, tínhamos connosco mais de duzentas armas. Sem os recrutas, teria de ser assegurada pelo oficial de dia, por mim, a quem calhava naquele fim-de-semana o serviço de sargento de dia, pelo Portimão como armeiro. O suficiente. Afinal a unidade estava dentro do campo militar, com segurança à porta de armas. Prosseguia:

-- Olhe, o Portimão pediu-me uma pistola...

Atónito, interrompi o passeio, olhei-o nos olhos: -- Meu major, ele é o armeiro, tem o quarto atravancado com G3! Até em cima dos beliches!

E o comandante, pacientemente: -- Eu sei. Mas diz ele que se lhe aparecer alguém de noite precisa de uma arma pequena. Por isso, dê-lhe a sua.

O major insistiu. E eu entreguei a pistola ao Portimão, já com balas no carregador, conseguidas com grande dificuldade depois do susto que ele me tinha pregado.

Partem todos de fim-de-semana. Na unidade deserta, desabafo com o aspirante que ficou de oficial de dia: -- Já viste a minha figura de palhaço, sargento de dia desarmado? E tive de dar a minha arma ao Portimão, que já tem duzentas...

Tranquilizou-me. Com o quartel deserto, não haveria novidades. -- Olha, a minha mulher e o meu cunhado vêm ter comigo e dormem cá, não faltam quartos livres. Vai-te embora para casa.

Sair do quartel, dormir em casa, com a minha mulher? Irrecusável. Portanto, desenfiei-me. Mas, para evitar que dessem por isso, no domingo regressei antes do restante pessoal. E o pobre aspirante contou-me a toirada da noite de sábado: o Portimão, outra vez bêbedo, e não tendo com quem brigar na nossa unidade, foi armar desacatos para o bar dos sargentos de um quartel vizinho, Engenharia. Chamado o nosso oficial de dia a repor a ordem, ameaçou matá-lo com a minha pistola... A custo conseguiu levá-lo de volta, teve várias vezes a arma apontada à cara, bala na câmara, sem se atrever a deixá-lo sozinho antes que a bebedeira passasse, temeroso pela mulher e cunhado, escondidos na ala dos oficiais...

Desta feita, o Portimão foi recambiado para a nossa unidade de origem, em Torres Novas. Dias depois, voltou a embebedar-se e infernizou o quartel, disparando rajada sobre rajada sobre tudo o que mexia. Os camaradas, resguardados nas esquinas, gritavam-lhe apelos à calma. Em vão.. Havia de matar o comandante, o segundo comandante, o sargento da companhia...

Por volta da meia-noite saiu do quartel. Desarmou pobre polícia, que em pânico se atirou às águas imundas e gélidas do Almonda e a nado fugiu para a outra margem. Depois, não encontrando a quem perseguir na vila deserta, reentrou na unidade sem que o frio da noite lhe tivesse arrefecido a fúria assassina.

Da capital chegaram ordens para o abater. Ninguém o queria fazer. Mas municiados com balas reais, os soldados respondiam ao fogo do camarada, evitando atirar à figura. Até que, pela madrugada, o Portimão, ao atravessar a parada para nova surtida na vila, caiu atingido por estilhaços de rajada, vários ferimentos ligeiros, um testículo a menos, Presídio Militar como destino.

FOTO: em Santa Margarida, com alguns dos camaradas destacados para dar a recruta. Estou à direita, ajoelhado, de óculos.

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