Número total de visualizações de páginas

quarta-feira, 29 de março de 2023

O teste extraviado

O teste extraviado*
(ao amigo S., que não vejo há quase meio século)
Chegámos ao primeiro teste de Contabilidade. Nenhum de nós percebia nada daquilo – e estudar, marrar, na nossa gíria, não adiantava. Era matéria esotérica, que escapava à nossa compreensão:
DEVEDORES
A CREDORES
Lá escrever em cursivo Francês ou Inglês, isso fazia-se. O significado era mais difícil de apreender, mas ainda se chegava lá, e percebíamos que era o oposto de
CREDORES
A DEVEDORES
por absurda que fosse esta situação.
Mas
MATÉRIAS PRIMAS
A EXISTÊNCIAS
era muito mais difícil de entender.
A professora – novinha, da idade dos mais velhos da turma – bonitinha, bata branca para que as contínuas a não tomassem por aluna, trazia-nos apaixonados, o que tudo piorava: se lhe bebíamos embevecidos as palavras, nada entendíamos delas, perdidos em sonhos de aventuras por terras longínquas, onde a salvávamos de feras, feitos Tarzan, e ela esqueceria a distância a que nos mantinha tratando-nos por “senhor”, garotos de quinze, dezasseis anos. E, qual Jane salva, cair-nos-ia derretida, agradecida, nos braços apaixonados...
Mas ali estava, frio, impiedosos, não um leão africano das savanas, um elefante enlouquecido, um urso polar nas gélidas planuras das tundras setentrionais – mas um teste, sem salvação possível, nem glória a cobrar.
Entreolhávamo-nos, trocávamos sinais, na esperança de que algum tivesse conseguido descodificar inteligível naquelas linhas manuscritas, ainda a cheirar ao álcool do duplicador. Mas em todos os rostos transparecia a desorientação; e então, escrevíamos qualquer coisa, para parecer que tínhamos compreendido aquela pergunta, a tentar conseguir uns pontos aqui e ali, não por respostas correctas, mas pelas vagas aproximações. Mas a Contabilidade, fria, racional, não se deixava enganar pelas nossas ingénuas tentativas, como viríamos a confirmas aquando da entrega dos testes:
– Senhor Catarino!
– Cipriano, stôra!
– Cipriano Catarino, 6,4.
E, vendo a minha expressão de desapontamento: – Com muita água-benta, que isto é só palha para encher.
Testes entregues, prepara-se para a correcção.
– Stôra, não entregou o meu teste!
– Pois não, senhor S.. Você entregou o teste?
Ele diz que sim. A professora estranha, o teste não se extraviou. Mas vai procurar outra vez em casa.
Aula seguinte, professora de feição muito séria, severa: – S. você entregou o teste?
– Entreguei, stôra!
– Você jura?
Ele jurava. Tinha-o entregado logo a seguir a mim. E eu, dividido entre a paixão, a verdade e a justiça, e a amizade pelo S., calava-me, bem recordado da conversa de então:
– Não vou entregar o teste!
– Não sejas parvo, não faças isso!
– Porquê? Vou ter zero na mesma!
Chegou o final de período, última aula, a professora diz as notas. Nove para mim, dez para o S., acompanhado da velha pergunta: – S., você entregou mesmo o teste? É que virei a casa do avesso e ele não aparece!
– Entreguei, stôra, juro que entreguei.
Período seguinte, última aula, melhores notas: eu ia ter quinze, positiva para o S. , não me recordo de quanto. E nós, em torno da secretária da professora, amena cavaqueira, a falar de futuro, das dificuldades em entrar para o Instituto Comercial, da necessidade de conseguirmos média para a dispensa de exame de admissão.
– Como tive nove no primeiro período, e neste vou ter quinze, terei de tirar dezassete no último!
A professora riu do atrevimento. Notas tão altas não eram comuns. Mas eu era convencido, estava apaixonado, por isso adorava a Contabilidade…
O amigo S. desabafava: não sabia se era suficientemente inteligente…
A professora interrompe-o: – S., eu nunca me considerei inteligente, e nunca repeti um ano! Com trabalho, tudo se consegue. E, vendo-nos tão descontraídos, – S., no período passado, você entregou o teste?
O pobre do S., rapaz bom e honesto, desta vez não conseguir continuar a mentir:
– Stôra, para dizer a verdade, não entreguei…
A meiga professora transformou-se em fera furiosa. O que tinha corrido, as voltas que tinha dado, as noites sem dormir a pensar como o teste poderia ter desaparecido! E saiu de rompante. Nesse período, o S., apesar da positiva no teste, teve seis ou sete, já me não recordo
Anos mais tarde, vim a ser professor. Milhares de testes por ano, que em princípio de carreira tinha largas centenas de alunos, muitas centenas de exames. Sempre com a história do teste do S. bem presente, nunca “perdi” nenhum, todos contados e recontados antes da turma sair, apesar dos protestos: já ali não estavam a fazer nada, iam chegar atrasados à aula seguinte, o stôr marcava-lhes falta…
E eu: enquanto não tiver a certeza de que todos entregaram o teste, ninguém sai. Quanto mais protestarem, e mais me interromperem a contagem, mais nos atrasamos. E eu também tenho aula a seguir.
Só um dia, por sorte com turma pequena de Francês, uma meia dúzia de alunas, entreguei os testes – todos riscados. A minha filha mais nova, vendo-os na secretária, pegou na esferográfica vermelha e “corrigiu-os”. Mas não faltava nenhum.
*Creio que então dizíamos "ponto".
Todas as reações:
Carlos Branquinho

quinta-feira, 23 de março de 2023

49 anos

Estas fotos são das poucas do meu casamento, que hoje perfaz quarenta e nove anos. Sem fotógrafo profissional, nem vestido de noiva, nem banquete, nem bolo. Raras prendas. A noiva estava grávida, eu era operário de plásticos em Leiria e vivia na Marinha Grande numa quase clandestinidade, não tinha ainda feito a tropa, não tínhamos uma única peça de mobiliário e dormíamos no chão...




Mudou por completo a minha vida. Fez de mim, que nasci mau, uma pessoa muito melhor -- ainda que nem sempre se note. Muito mais feliz.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Nota de leitura de Gilvaz

Tempos atrás, após leitura do PDF de Gilvaz, o Homem das Cicatrizes, a amiga Maria Emília Simões enviou-me a seguinte nota de leitura, que agora  divulgo com a sua autorização.


“Acabei agora mesmo a leitura de Gilvaz. Bela obra, bem escrita e bem construída. Por razões várias, não consegui começar no dia aprazado, mas hoje comecei logo de manhã. Penso que gostará de saber que tive de parar para descansar as costas e me custou interromper a leitura. A narrativa está tão bem estruturada que queremos sempre saber o que vem a seguir, porque o herói nos toca e as suas aventuras estão organizadas com uma lógica perfeita. O retrato do revolucionário puritano, intransigente e fiel aos seus ideais está muito bem dado. Gostava de falar da linguagem que utiliza, mas para isso preciso de mais reflexão. Para já, posso apenas dizer-lhe que serve muito bem a narrativa e transmite sentimentos e sensações subterrâneas de uma forma admirável. Impressionou-me logo no início, quando descreve aquilo que a endemoninhada esconde por ter tido o cuidado de atar o saiote: tomamos consciência de que não deixa de ser uma mulher capaz de despertar desejos, mesmo se nada é dito quando à sua beleza ou graça - obviamente diminuídas pela actuação como possessa. Mas voltarei ao assunto depois de reflectir mais demoradamente sobre a leitura que fiz. Escusado será dizer que gostei muito, e estou muito grata pela disponibilização da obra. Muito obrigada e muitos parabéns. Merece prémio, sem dúvida! 🙂

Maria Emília Simões”

quinta-feira, 9 de março de 2023

O prémio

No meu primeiro ano do Curso Comercial, tive, pela primeira vez, aulas de Inglês. A professora, jovem em início de carreira, chegou cheia de ilusões e de boa vontade. Para nos motivar, haveria, portando-nos bem, aulas em que traria gira-discos e ouviríamos música inglesa e, após cada teste, ofereceria um single ao melhor aluno.

Mas a turma era má. Tinha muitos repetentes, alguns já a avizinhar os vinte anos, filhos de gente importante na cidade. E nós, treze, catorze anos, que queríamos aprender a língua dos Beatles, corresponder à simpatia da professora, assistíamos com desgosto e desaprovação interior ao abandalhar as aulas. Depressa se acabou a música e o gira-discos, de nada adiantou tentar, fora das aulas, apelar ao Augusto , o líder do gangue: Eu quero que a professora boazinha se f.! E ai de ti se dizes alguma coisa, cá fora levas no focinho!

Entregou o primeiro teste, então chamado exercício escrito, elogiou o melhor aluno, quis saber que disco queria, e, na aula seguinte, entregou-lho. Eu terei ficado em terceiro ou quarto lugar. A história repetiu-se no teste seguinte. Ainda não tinha chegado a minha vez.

Incapaz de ter mão na gandulagem, a professora passou a apresentar queixa. Não adiantava mandar o Augusto para a rua, porque ele recusava-se a sair. O director da escola incumbiu o director de curso de resolver o conflito.

Esperava eu que ouvisse cada um de nós em privado, e formasse opinião depois. Nada disso. Sem a presença da professora na sala, adoptou a postura de camarada, de compincha: Ora vamos lá a saber o que se passa, a professora apresentou queixa da turma. 

Toma a palavra o Augusto e culpa a professora: Veja o “senhor doutor” que até teve o descaramento de dizer, a turma pode ser testemunha: Eu tenho a faca e o queijo na mão! E eu não me calei: se a stora tem a faca e o queijo, eu tenho o pires!

O director de curso, professor de Contabilidade do terceiro ano, acena em concordância com a cabeça: É o primeiro ano de ensino dela, eu… e contava histórias da sua experiência pessoal comprovando que, ele sim, é que era bom professor. Ficámos nisto até ao toque de saída, o Augusto e os seus apoiantes a elogiarem o director de curso, ali promovido a “senhor doutor” (contabilista não tinha direito ao título, ao contrário da jovem professora, licenciada em letras, a quem o negavam, referindo-se-lhe como “ela”), Fiquem descansados, vou falar com a minha colega para ver se ela tem mais calma.

Aula seguinte, mesmo comportamento, interrupções frequentes, sempre a despropósito, disparates e piadas secas constantes, enquanto, debalde, a professora, sabendo-se desautorizada pela hierarquia, até porque o Augusto não se coibia de lhe dizer que o senhor doutor directos do curso “nos tinha dado razão, tentava, ao menos, “dar a matéria“.

Terceiro teste, último do primeiro período e, finalmente, a melhor nota é a minha. E já sabia que single iria pedir, tinha previamente conversado com os colegas de quarto:

— Vou pedir o What is reading dos Beatles!

Riram muito. Queres dizer, Dock of a Bay, do Otis Redding!

— Pois, é isso!

Mas não pedi.

— Têm-se portado tão mal que não vai haver mais prémios nem confianças. A partir de agora, nem os dentes me vão voltar a ver!

quarta-feira, 8 de março de 2023

Chatgpt

Certamente já todos ouviram falar no Chatgpt. Eis duas perguntas que lhe fiz, para avaliar a qualidade das respostas. Parece-me que a redacção está ao nível da  de pessoas que escrevem muito bem. Atente-se na estruturação dos textos, na sintaxe, no vocabulário, na pontuação, para além dos conteúdos.

1. E o que se sabe sobre a matéria negra?

A matéria escura, também conhecida como matéria negra, é uma forma de matéria hipotética que não emite, absorve ou reflete luz ou qualquer outra forma de radiação eletromagnética. Acredita-se que a matéria escura constitua cerca de 85% da massa do universo, mas sua natureza exata ainda é desconhecida.

A existência da matéria escura foi proposta pela primeira vez na década de 1930 por Fritz Zwicky, um astrônomo suíço-americano, que observou que a quantidade de matéria visível em galáxias não era suficiente para explicar a velocidade de rotação das estrelas em suas órbitas. Desde então, as observações em várias escalas cósmicas, de galáxias a grupos de galáxias e aglomerados de galáxias, continuaram a sugerir a presença da matéria escura.

Embora a natureza exata da matéria escura ainda seja desconhecida, existem várias teorias sobre o que ela poderia ser. Uma teoria é que a matéria escura é composta de partículas elementares ainda não descobertas, como o WIMP (partícula massiva que interage fracamente). Outras teorias propõem que a matéria escura pode ser formada por objetos maciços, como buracos negros primordiais ou estrelas fracassadas, conhecidas como anãs marrons.

A detecção direta da matéria escura ainda não foi alcançada, mas os cientistas continuam a procurar maneiras de identificar sua presença. Vários experimentos estão em andamento, incluindo detectores subterrâneos e telescópios que procuram evidências de matéria escura na forma de anomalias gravitacionais. O estudo da matéria escura é uma área ativa de pesquisa em astronomia e física de partículas, e a esperança é que, eventualmente, possamos entender melhor a natureza dessa misteriosa substância e sua influência no universo.


2. Quais as principais diferenças entre o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português?

O Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) são dois partidos políticos de esquerda em Portugal, com algumas semelhanças ideológicas, mas também diferenças significativas.

Uma das principais diferenças é que o BE se define como um partido de esquerda pluralista e socialista, enquanto o PCP se define como um partido comunista. Enquanto o BE tem uma abordagem mais aberta e inclusiva, o PCP é mais ortodoxo em termos de sua ideologia comunista.

Outra diferença importante é a relação com a União Europeia (UE). O BE é geralmente mais crítico da UE, enquanto o PCP é a favor da permanência de Portugal na UE, mas defende uma posição crítica em relação às políticas neoliberais da UE.

Além disso, o BE tem uma posição mais progressista em relação a questões sociais, como direitos LGBT, feminismo e imigração. O PCP também tem posições progressistas em algumas dessas questões, mas tende a ser mais conservador em questões de costumes e tradições.

Por fim, o PCP tem uma estrutura organizacional mais rígida e hierárquica, com forte centralização do poder no Comité Central. O BE, por outro lado, tem uma estrutura mais flexível e democrática, com decisões tomadas em assembleias e convenções.

É importante lembrar que essas são generalizações e que há membros e simpatizantes do BE e do PCP que não se enquadram necessariamente nessas descrições. Ambos os partidos têm um papel importante na política portuguesa e muitas vezes trabalham juntos em questões em que têm interesses comuns.

terça-feira, 7 de março de 2023

Oradores e escritores

Num conto de Ray Bradbury*, uma personagem, que se depreende ser Hemingway, mas sempre referida como o Velho, interpela o protagonista e narrador:

"-- Você sabe falar -- comentou.

-- Nasceu comigo.

-- Daria um péssimo escritor -- prosseguiu. -- Nunca conheci um escritor que fosse um bom orador. "

Parece afirmação provocatória, que vai de encontro à crença generalizada de que o escritor sabe falar bem. Por isso, os escritores são amiúde convidados a falar em público, em encontros, festivais literários, nas escolas, na rádio, até na televisão.

(São ouvidos, mas à borla; são escutados, mas não lidos; e duvido que depois lhes comprem os livros, mas estas são outras histórias, talvez para outras ocasiões.)

Um bom orador precisa de qualidades específicas, que não são as que fazem o escritor, e vão muito além das capacidades de efabular e de cativar a atenção: aspecto, presença, voz, dicção, forte presença de espírito, argúcia, muita esperteza (a inteligência dos burros, como dizia uma professora minha), vivência em sociedade e domínio dos respectivos maneirismos, capacidade de empatia com o seu público, indo de encontro ao que pressente que a audiência quer ouvir, etc. Como exemplo, os nossos políticos e comentadores, os advogados e juristas que preenchem os espaços televisivos de debate, são, regra geral, bons oradores, fazendo jus ao dito popular “quem o ouve falar não o leva preso”. Que eu saiba, nenhum é escritor.

O escritor pode ser — e muitas vezes é — criatura insignificante e quase desprezível, como o insecto de Kafka, embirrento, maníaco, desinteressante, gago como Somerset Maugham, pode ter pronúncia cerrada, voz feia, ser incapaz de cativar audiências, de empolgar os ouvintes. Para quê, então, querer ouvi-lo, quando a sua linguagem é outra, se o espaço em que, eventualmente, brilha é o do texto escrito, em que põe tudo o que tem, tudo aquilo de que é capaz, tudo aquilo que tem para dizer? 


*Ray Bradbury, "Rumo a Quilimanjaro", in As Vozes de Marte, (I sing the body electric), colecção Argonauta, Ed. Livros do Brasil, Lisboa)