Fui então os olhos e os ouvidos do Mestre na Judiaria. Não era tanto o que os judeus me diziam que interessava: também o Mestre os ouvia amiúde. Eram os pormenores que pudessem alertar para partida iminente. Mas na Judiaria a vida decorria como fora dela, na cidade cercada: privações, fome, pedidos de esmola, mancebas que me chamavam das janelas e se me ofereciam a troco de comida ou de dinheiro, sempre a medo de serem descobertas e castigadas por se deitarem com cristão — mas a fome, delas e sobretudo de seus filhos, sobrepunha-se ao medo da punição. Também em casa de D. David, tão rico ao que se dizia, a parcimónia imperava: havia o caldo aguado em que desfazíamos o pão ázimo, já de si duro, hortelã, salsa, poejos, orégãos e outras ervas a boiarem em vez das couves que há muito haviam acabado, por vezes, raramente, pequena tira de carneiro salgado ou carapau enjoado a dar o tempero. Comecei a trazer às escondidas nacos de borrego, de cabrito, mais raramente de vaca, e entregava-os à criada para que a minha amada, tão debilitada pela doença que a minha ausência lhe causara, ganhasse melhor cor e fosse perdendo a magreza que dela tomara conta; mas Esther dava-os à irmã, criança em quem receávamos descortinar sinais de tísica, na sua magreza, na palidez, na vivacidade e na lucidez surpreendentes na sua tenra idade — e nas visões. A princípio, não me quisera delas falar nem consentia que Esther o fizesse. Mas tão ligadas eram aquelas irmãs que até o amor por mim pareciam partilhar e tão faladoras que as incomodavam os silêncios que por vezes tombavam sobre a sala onde namorávamos, sempre separados pela mesa. Depressa esgotava eu as novidades, pois não me alongava na descrição dos padecimentos da cidade dada a nojo dentro e fora da judiaria, nem contava os meus feitos nas escaramuças, que não fica bem a gentil-homem gabar-se — e quase sempre pouco haveria para relatar: rápidas surtidas, choque brutal com os inimigos, fortes golpes de facha que amassavam os corpos por debaixo dos bacinetes e vestidos de malha, derrubes de lança mais aparatosos e humilhantes do que perigosos, por vezes alguns feridos em sofrimento atroz, mais raramente mortos de parte a parte. O resto eram conversas de homens, sempre vulgares, em linguagem de caserna, impróprias para donzelas cultas e delicadas como eram aquelas judias. Então, talvez por precisar de desabafar, talvez para que eu partilhasse as atribulações da sua família e da sua raça, no presente e no porvir, Esther falou dos pesadelos da irmã e vendo que os não apoucava nem ridicularizava, a própria Sara ganhou confiança e ousou contá-los, creio eu que em vã tentativa de deles se libertar: em eras por vir, os judeus padeceriam horrivelmente, vivendo a medo, a medo falando, a medo calando, as crianças roubadas aos pais e baptizadas à força cristãs por entre choros horríveis, levadas para longes terras para serem criadas por famílias cristãs, condenadas a jamais reverem pai e mãe, se acaso vivos ainda fossem; homens eram desmembrados por padres para que confessassem pecados e crimes que não haviam cometido e, ou morriam das sevícias, ou, confessando, seriam queimados juntamente com as mulheres e os filhos enquanto os cristãos os insultavam e escarneciam dos seus padecimentos…
— Vês tudo isso nos teus sonhos?
Negou, abanando a cabeça. Era muito pior. Não via, vivia. Nos seus pesadelos, ela era o homem torturado, a criança roubada à mãe e para mui longe levada, era o seu corpo que ardia nas fogueiras sob insultos e escarros dos cristãos…
— Tudo isso são sonhos. Deves esquecê-los quando acordas, fazem-te mal porque sofres com eles como se verdadeiros foram.
— E são, fidalgo. Deveis ter já reparado que nos sonhos não sentimos os odores, não vemos as cores, pelo menos como quando em vigília. Ah, se soubésseis como são aflitivos os gritos das crianças que ardem, como é horrível o cheiro da carne humana queimada, como fedem as masmorras em que sou encarcerada! Mas, sabei, virão outras eras muito piores, em que nós, judeus, somos arrebanhados como gado, metidos à força em estreitas carruagens mais compridas do que a nossa Lisboa, homens, velhos, mulheres, crianças, tantos de cada vez que não dá para contar, para sermos mortos aos milhares em salas de ar envenenado, os cabelos rapados para urdirem com eles meias, a pouca gordura dos nossos corpos famintos aproveitada como se da de animais se tratasse.
— Impossível, retruquei. Em tempo algum tal acontecerá, pelo menos na nossa Europa, tão civilizada, toda ela cristã. Torturar, matar, acredito. Agora calçar peúgas feitas de cabelo de mortos ou usar a sua gordura, jamais tal sucederá no mundo cristão.
— Nem todos são cristãos. Mas naquela era, até os que o são, mais do que a Deus adoram a um homenzinho ridículo, cara rapada e bigodinho tão insignificante como ele. Quem o vê, não imagina a sua ruindade: é pior do que o próprio Satanás. Já lestes o Apocalipse?
— Não. Não sei muito Latim. Mas já ouvi dizer que o apóstolo João viu o fim do Mundo.
— Assim é. Então dizei-me: se ele o viu, não o posso também eu ver?
Protestei contra a blasfémia: os profetas acabaram com a vinda de Cristo ao Mundo. Acabaram os profetas, começaram os santos. Porque deixou de ser necessário preparar a vinda do Messias — e, adivinhando o sorriso escarninho de Sara, lembrei-me de que para os judeus Jesus é, apenas, outro profeta, mas não ainda o Salvador que os reconduzirá ao prometido reino do leite e do mel. Pois continuam a penar e a padecer, dispersos por este mundo que tanto os persegue e atormenta por os seus antepassados matarem o Filho do Homem…
Atalhou-me Esther: — Não discutamos as nossas religiões, que há catorze séculos se não entendem, como mãe e filha desavindas. E — olhou reprovadora para a irmã — deixemo-nos de conversas fúnebres, de pesadelos aterradores. Que pensará de nós o meu namorado? Sorriu-me: — Pois nem parece que estamos a namorar.
— Bem guardados por mim. E digo-vos, mesmo sabendo que sou causadora de vossa tristeza, este vosso namoro é um dos meus raros prazeres. Ao ver-vos tão apaixonados, ao ver como me fingis ouvir enquanto os vossos olhos se procuram e encontram, esqueço por momentos o meu pesar e o meu triste destino.
Eu tentava tranquilizar a pobre pequena: tudo isso eram pesadelos, o futuro a Deus pertence e só Ele o conhece, o Homem jamais será tão ruim que faça tais atrocidades a crianças, a mulheres, a velhos indefesos. É certo que na guerra fazemos coisas horríveis, mas contra inimigos tão valentes como nós, que igual ou pior nos fariam se pudessem; mas nela ou na paz é dever do cavaleiro proteger as damas e as donzelas, sejam elas cristãs ou judias. E para as distrair narrei a triste história do moço que tempos atrás perdera a mão direita. Meio verdadeira, meio inventada, bem alongada como pertence.
Gheke Pepe (inédito)
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