Acordei estremunhado com gritaria que alvoroçava toda a Travessa do Mata-Porcos, mas antes que assomasse à janela a apurar o motivo da algazarra, entra-me quarto adentro a dona da moradia acompanhada de brava regateira que arrasta consigo pela orelha moço. Olham em volta e não encontrando meu primo, viram-se furiosas para mim, atravessam-se-me à frente, impedindo-me de deitar a mão à espada pendurada em prego na parede ao lado da cama, a regateira empurra-me contra o tabique, deita-me as manápulas à camisa de dormir: onde estava esse canalha, meu primo, que lhe sodomizara o filho?
Olho-a aparvalhado, de nada sabia. Quando tal sucedera?
Não importava, berrava. Não viera a discutir calendários, mas a exigir reparação. Ou acusava-o na justiça e, quanto mais não fosse pela má fama que tinha, não se livraria de ser dependurado como tordo na boiz. Onde estava?
A gritaria atraía mais e mais gente, primeiro mulheres das vielas e da vida, logo seguidas por rapazes vadios que jogavam à bilharda na rua, homens desocupados que por ali arrastam os dias, toda a gente revoltada contra os fidalgos pervertidos que, lá por serem ricos e poderosos, se arrogam o direito de abusar das pobres crianças indefesas, e tantos e tantas entraram porta adentro que o pequeno quarto depressa ficou completamente atravancado, eu espalmado contra a parede, sofrendo safanões, piparotes, injúrias, como se fora o acusado. Tentava protestar a minha inocência, a ignorância do sucedido, mas ninguém queria ouvir as minhas razões: — Cala-te que és igual a ele. Família, farinha do mesmo saco.
A indignação popular crescia: — Ah, isto agora mudou de figura, acabou-se o tempo do “quero, posso e mando”, doravante outro galo cantará, que já não têm quem lhes acuda por parte da aleivosa da rainha!
— Hão-de pagar, senhora comadre, por aquilo que fizeram, por aquilo que nos têm feito, por aquilo que nos fariam se os deixássemos! Este já não escapa e o outro, quando lhe deitarmos a mão…
E das escadas, sem conseguir entrar, o taberneiro judeu grita que comêramos e bebêramos do seu sem pagar. Para não ficar atrás, berra a minha senhoria que lhe devíamos o aluguer do quarto. E a criada gorducha das redondezas acusa-me de dela haver abusado – fora ela a convidar-me, seduzida, ao que então me dissera, pela minha juventude e beleza, naquele tempo em que eu, receando ser sodomita, trabalhava para esclarecer as dúvidas e fatigar o que supunha ser a causa do pecado. E, acrescentava altas vozes, com ela fizera porcarias que são contra a nossa santa religião – coisas que ela me ensinara, no seu gozo da minha virgindade, dessas a que as mulheres recorrem quando querem contentar os homens e receiam emprenhar, pelo que se não admirava que também houvesse penetrado o pobre rapazinho no cu, pois a ela o mesmo fizera, isto depois de a desvirginar — e ninguém ria!
Encostado à parede, via-me já como o pobre Bispo, como o tabelião e o prior de Guimarães que com ele jantavam, mortos sem por quê, lançados da torre da Sé afundo, desnudados, mutilados, a apodrecer em plena rua devorados pelos cães, roídos pelas ratazanas, infestados pelas larvas das varejas, sequer sem enterro cristão. E tomado pela cobardia que, por vezes, acomete até os mais valentes, gritei: – Mas é a meu primo, o senhor fidalgo Álvaro Domingues, que esta senhora acusa. E ele não está. Eu nada tenho a ver com isto, nunca vi o moço mais gordo!
O ruído enfraqueceu. E eu continuei: — Esta mulher acusa a meu primo, não a mim. E não diz quando ocorreram os acontecimentos...
E ela: – Quando? Ora toda a gente sabe. De há meses para cá. Ainda ontem...
Interrompi-a triunfante: – Mentes, má puta velha! Há mais de uma semana que meu primo saiu de Lisboa, a juntar-se à hoste de D. Nuno Álvares Pereira, acrescentei, na esperança de que o patriotismo e a adoração por D. Nuno sossegassem a populaça.
Mas a velha era osso duro de roer: – Teu primo e tu são unha com carne. Ambos pervertidos e invertidos. Basta ver que dormem juntos, na mesma cama, dizia e apontava com gesto largo o estreito leito que partilhávamos. E virando-se para o filho, rapazote dos seus quinze, dezasseis anos, a penugem do bigode a despontar: – Este também foi? E perante o olhar duro da mãe, o moço aquiesceu com meneio de cabeça. E a velha, triunfante: – Diz alto o que te fizeram estes malandros.
— Tenho vergonha…
— Ou contas ou arrebento contigo antes de arrebentar com o fidalgote!
— Tomaram-me à força, numa esquina do Poço do Chão, e fui por eles fodudo no cu...
— Por qual deles?
Pois não o sabia. O olho de trás é furado, acrescentou com esgar malandrino. Talvez até por ambos…
A fúria da multidão recrudescia. Pouco lhes importava que fosse inocente ou culpado. Afinal todos somos pecadores, assim reza a nossa santa religião, os maiores de todos são os poderosos, a mim não faltariam portanto pecados nem acusadores — se não foi teu primo foste tu, matam-se primeiro, o Senhor apurará depois a inocência ou a culpa e proferirá sentença em conformidade. E uma jurava altas vozes por tudo o que há de mais sagrado que sim, eu era sodomita, vira-me embrulhado com um rapaz, demais a mais judeu, aos beijos na boca e com lambuzadelas como os cães, em tal pouca-vergonha que nos enxotara dali para fora, e cresciam de novo para mim, arrepanhavam-me a camisa, empurraram-me para fora do quarto, lançaram-me escadas abaixo sob socos e pontapés, arrastaram-me pelos pés para o meio da rua enquanto troçavam cruelmente das minhas misérias que a camisa de dormir enrolada ao pescoço não lograva esconder, cuspiam, escarravam, atiravam terra e pedradas à pobre tripazinha que culpavam de haver penetrado rapazinhos, quando a velha, receando que pusessem cobro a meus breves dias com crueldades terríveis antes de haver em mãos o provento do ardil, se interpôs entre mim e a turba: – Pagas já em dinheiro pela desonra e maldades que fizeste a meu filho, ou preferes pagar com o corpo?
E ouvi na multidão a homem que se mantém de mulheres, certamente indignado por algumas delas me haverem ofertado seus serviços: – Paga primeiro em dinheiro, depois com o corpo
— Pagas ou não?, berrava a regateira, enquanto me sacudia violentamente pelas abas da camisa de dormir.
— Eu também quero o meu dinheiro da vitelinha e das sardinhas comidas e jamais pagadas!
— E eu, os meus alugueres atrasados!
— E eu, esganiçava-se a criada gorducha sem que nenhum a não desmentisse, exijo reparação por me haver desonrado!
E todos em uníssono:
— Primeiro a mim, que para isso cá vim e me fodeu o rapaz no cu!
— Não, a mim, que me papou as sardinhas e a vitelinha e me mamou o bom vinho!
— A mim, que fui por ele desvirginada!
E eu, apavorado, que em situações como aquela qualquer valente se acobarda, nem ousei continuar a protestar inocência: — Pago.
Prontamente todas as mãos se estenderam.
— Comigo não tenho..., mostrando com gesto a nudez, que a camisa de dormir enrolada ao pescoço não ocultava.
— Vamos então buscar a contia ao quarto de Vossa Senhoria.
Sempre debaixo de repelões, safanões, estaladas, que todos queriam molhar a sopa e fazer justiça por suas mãos além de receber as contias cujas suas diziam ser, empurravam-me para dentro de casa, depois escadas acima até ao cubículo onde dormia. Nem tentei protestar que lá também nada tinha. Antes, num daqueles relances de ousadia em que a juventude é fértil, sacudi as mãos que me empurravam, entrei lampeiro como se tivesse o colchão forrado a dinheiro, de um pulo alcancei a espada, feri aos mais próximos sem gravidade, apenas cortes que os fizeram recuar de surpresa e de dor, e antes que me acometessem enraivecidos pelo logro e pela reacção, saltei pela janela para os telhados e corri, corri desalmadamente sempre perseguido por rapazolas, entre os dianteiros o que me acusara de o haver fodudo no cu, enquanto em baixo, pelas ruas e vielas me perseguiam os homens, mais atrás corriam as mulheres ululando por vingança, sangue, castigo cruel para pederastas e sodomitas. E eu, com asas nos pés, pulava sobre casas, saltava de ruela em ruela, telhas partiam-se à minha passagem, uma vez ou outra quase cai dentro dos sótãos, até que, junto à Sé, avistando a prelado a subir indolente a rua, saltei para a rua, tomei-lhe as rédeas, apeei-o da montada sob a ameaça da espada e, enquanto o diabo esfrega um olho, piquei a mula rua abaixo, finalmente a salvo dos meus perseguidores, apenas vestido com a camisa de dormir esvoaçante que nem sempre ocultava as partes pudendas, tão magoadas pela crueldade justiceira da populaça. Por onde passava, atraía a atenção e a mofa, uns a chamarem outros: — Mestre, venha cá fora ver isto!
E gritavam-me, com a falta de respeito a que, melhor ou pior, me ia habituando:
— Fidalgo, foges de marido sanhudo?
— Ná, é de puta a quem ficou a dever.
— Taberneiro. Taberneiro, que o fidalgo é ruim caloteiro.
Gheke Pepe
* Título pilhado a Fernão Lopes. Na época arcaica, verbos terminados em -er tinham o particípio passado em -udo (eg., saber, sabudo).
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