Como o
protagonista de O Estrangeiro, Meursault, também eu acredito que todas as vidas
se equivalem, pelo menos no instante derradeiro da morte. É minha convicção
profunda que deste mundo nada levamos, nem sequer ínfima recordação dos bons
momentos. Que a vida é menos do que piscar de pirilampo na noite eterna.
Efémero, vago, mortiço. Se alguma coisa lhe pode dar valor enquanto a luz que
nos anima se não esvai, são os afectos criados, laços que resistem a ser
desatados, lembranças saudosas que serão espoletadas por uma fotografia, um
objecto, um lugar, uma brisa, um entardecer.
Passo de
tractor pelo adro e revejo o meu bisavó Zabel sentado nas escadas da igreja,
mais além, no Outeirinho, o meu avô Catarino, alcunhado Sargento, de bigode
branco, boné, agarrado a pau depois que trombose lhe tolheu uma perna, escuto
com o prazer de outrora as suas intermináveis histórias de tropa, ouço-o
novamente, a cinquenta anos de distância: -- Zé, quando fores grande, hás-de
ser aviador!, no banco, simples tábua, por entre sardinheiras, a minha avó
Francisca, cega, mantém diálogos vivos a várias vozes com gente já morta, e eu
venho mandado buscá-la pela mão e
levá-la até minha casa que é a nossa semana, no caminho passo pelo meu
avô Cipriano, de barrete a proteger a careca, a Avó da Luz em luto perpétuo,
que de tudo fazia história, aparelha a burra...
Sem que o convoque, chega também o
arrependimento pelas vezes em que os tratei mal -- mau génio, revolta por ter
de lhes fazer companhia quando queria brincar, correr a coxia, ir aos ninhos,
agravada pela rudeza aldeã daqueles tempos em que, muito mais do que hoje, os
velhos eram vistos como trastes, estorvo, despesa.
Ah, esta minha memória, que nada esquece,
nada me perdoa!
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