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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

43 anos de namoro

Quando começámos a namorar, a 3 de Fevereiro de 1973, o mundo era outro. Mas mudava depressa. Os americanos, com todo o seu poderio, tinham sofrido derrota humilhante no Vietname. Cá, a ditadura herdada por Marcelo Caetano agonizava. O "orgulhosamente sós" salazarista era por todo o lado interpretado como "vergonhosamente sós", tão mal acompanhado que Portugal estava: só Israel, sionista, e a África do Sul do aparteid nos apoiavam nas votações das Nações Unidas. A guerra colonial estava no auge, e nem a censura conseguia evitar que os jornais antecipassem a derrota iminente: lembro-me de título de primeira página do Diário de Notícias reproduzindo declarações do ministro da defesa, general Costa Gomes,  proferidas em visita a Moçambique: "A situação é grave, mas não desesperada".

Era tão desesperada que o general a não negava. E, se dúvidas houvesse, bastava ver as longas listas de mortos, sobretudo furriéis e alferes milicianos, que o mesmo jornal publicava diariamente e eu recortava para afixar no bar do Instituto Comercial onde estudava. Pouco. Já então a actividade revolucionária me absorvia de tal forma que o meu tempo era gasto a escrever e distribuir panfletos, de dia nas escolas e universidades, de noite nos "meus" bairros populares (Madragoa e Alvalade), a fazer "selos" (como chamávamos às tiras autocolantes com slogans revolucionários impressos com carimbo) e a colá-los por todo o lado, nas paragens de autocarro, nas vitrinas dos bancos, nas árvores de jardim, a pintar paredes, reuniões clandestinas, actividades de recrutamento, manifestações diárias...
Perdido de sono, de que sempre sofri e sofro, incapaz por natureza de noitadas, faltava frequentemente às primeiras aulas. Sempre alerta para não ser seguido ou preso pela PIDE, ia irregularmente às outras, sentava-me junto à janela, pronto a saltar e fugir se me tentassem prender lá. Nas aulas, escrevia constantemente, mas não eram apontamentos de aluno atento, antes panfletos estereotipados, para imprimir e distribuir mais tarde.
A minha vida era então a Revolução. Ou quase. Porque havia também a paixão inconfessada pela colega da foto, tirada antes de namorarmos. Sem coragem de me declarar, a medo de a perder.
Amigos. Colegas de estudo, inseparáveis nas aulas, nos intervalos, uma noite por outra noite no Big Ben, café de estudantes próximo da Faculdade de Ciências, onde o fumo era de cortar à faca e eu lhe tentava explicar os mistérios da matemática, a resolução de equações de segundo grau, o enigma dos números imaginários,

-- Se são imaginários não existem!
-- Mas repara, qual é o número que elevado ao quadrado dá -4?
-- Menos dois!
-- Mas não pode ser, bem sabes que o quadrado de um número negativo é sempre um número positivo!
E ela protestava contra a tirania dos axiomas, a irracionalidade dos números irracionais, a incompreensibilidade dos números imaginários! Coisa mais absurda, a Matemática! Não se podia ficar apenas pelos números naturais, afinal aqueles que importam a futura contabilista?

Pois na noite de 3 de Fevereiro, dia do seu aniversário, começámos a namorar. E, quarenta e três anos depois, ainda não parámos. 
FOTOS: (1) Junto a Económicas, em cuja cantina almoçávamos frequentemente; (2) a estudar, salvo erro na estufa fria, aí por 1972. Somos o par da direita.

1 comentário:

Beatriz Lamas Oliveira disse...

Como se todo o amor fosse
um amor somente...

Ai, como é diferente!

Ai, como é diferente!
O amor em Portugal!