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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Amanhecer blasfemo

Todos os sábados, ao anoitecer, chegava a casa a cair de bêbedo. Cabeça pendente sobre a mesa, enquanto aguardava as couves com feijões da ceia, ruminava as humilhações da semana, atacavam-no fúrias, esmurrava a mesa, ralhava, replicava aos apelos à contenção com berro herético: "Os colhōes do Padre Santo!". 
Nem outros palavrões, nem outras blasfémias. E esta reservada para as bebedeiras. Tão violenta que jamais a esqueci e então receava que na rua o ouvissem os beatos "tus", assim chamados porque, dizia-se, entre eles todos se tratavam por tu independentemente das hierarquias sociais, e fizessem queixa ao padre, à polícia, à pide. 
Cinquenta anos depois, matinalmente massacrado com as reportagens televisivas sobre as voltinhas do papamóvel na Praça de São Pedro, o anel, o palácio onde vai habitar e as suas divisões,  os pormenores passados presentes e futuros -- e eu queria a meteorologia, que isso é que é serviço público, vital para a agricultura -- também eu berrei pelos colhōes do Padre Santo, ou será ele descolhoado, ou de tal detalhe, fundamental para a governação, se terá esquecido a douta enviada especial, que tudo o mais sabe, que de tudo o mais fala, que sobre todas as outras coisas opina? 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Da modalização

O bispo das forças armadas quer um papa assim e assado. Vale e Azevedo quer juiz afastado e fim do julgamento. Toda a gente deu em querer, ninguém parece pedir, solicitar, requerer. Condicional faleceu. Imperfeito de politesse vai pelo mesmo caminho. Todos ufanos, inchados, egocêntricos, a exigir um mundo conforme às suas megalomanias engordadas pela incompetência do jornalismo de hoje.

Senhor bispo, mal sabe falar e quer impor a sua vontade ao sínodo? E os presidiários engravatados têm mais direitos do que os outros?
Mais uma vez faço minhas as palavras de Napoleão, que tão bem caracterizou em Talleirand os "grandes" de todos os tempos:
"Vous n'êtes que de la merde dans un bas de soie!"
V/ não passa de merda numa meia de seda - hoje numa  gravata de seda.
É o que mais vejo e ouço por aí: merda engravatada a querer. Sobrepor a sua vontade às leis, à sociedade. Porque querem, mesmo que lhes falte saber, poder, bom-senso. Como falta aos jornalistas que se fazem porta-vozes das suas asneiras. Asnos uns e outros. Asnos nós, que os escutamos sem os mandarmos encher meias.
Imagem: do pintor João Alfaro

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Kasé Sensei no Le Monde

Mestre Kasé (1929-2004) é hoje homenageado na edição online do prestigiado jornal Le Monde. Figura incontornável do estilo Shotokan, o mestre marcou como poucos o karaté francês e exerceu forte influência sobre o europeu. Muitos anos atrás, participei num estágio que ele dirigiu em Alverca, onde conheci pela primeira vez a extraordinária kata Chinte.
Aos numerosos discípulos que deixou em Portugal, sempre saudosos do mestre e orgulhosos das graduações que lhes atribuiu, recomendo a leitura do artigo.
Vídeo: mestre Kanazawa executando Chinte

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O papa explicado às crianças

O Afonso, que já lê mas não compreende as legendas da televisão, quer saber quem é o papa. Explico o melhor que sei: é o chefe da igreja.
-- Porque é que falam dele?
-- Porque pediu para deixar de ser papa.
-- Porque é que já não quer ser papa?
-- Porque é muito velho e diz que já não pode trabalhar mais.
-- O que é que ele faz?
-- Não sei bem. Manda na igreja, vai a reuniões, recebe pessoas, escreve...
-- E agora ficamos sem papa?
-- Não, vem um mais novo para o lugar dele.
-- E porque é que só falam do papa?
-- Porque não têm mais de que falar. A televisão é assim. Num dia o mau tempo, no outro um acidente, hoje é o papa. Isto passa. E depressa. 

Arte moderna

Umberto Boccioni, Dynamism of a  Cyclist
Miguel Ferreira, Nave Espacial

A morte do Entrudo

As crianças jogavam ao Entrudo. As pobres, que as mais remediadas não se expunham ao ridículo público. Entrouxávamo-nos com vestuário feminino, rosto escondido por meia de vidro surripiada a uma das tias -- nem nos passava pela cabeça meter-lhe tesoura recortando buracos para boca e olhos. Na mão, cajado ameaçador, e saíamos à rua a atemorizar. Os homens riam, as mulheres fingiam medo, as raparigas já fora de idade para entrudos ridicularizavam, escarneciam das minhas pernas peladas, elas que as tinham já peludas como as das aranhas:
-- Olha-me as pernas daquela!
Deitavam-se a adivinhar quem seria, algumas mais atrevidas agarravam-me, o que não era difícil, cambaleante nos saltos altos da minha tia, e arrancavam-me a meia da cara. Mais adiante, talvez encontrasse outros entrudos, em magote percorríamos a aldeia, demorávamo-nos no adro da igreja cobrando gargalhadas e incitamentos, voltávamos a casa, cansados mas orgulhosos: ousáramos ser entrudos.
Pouco depois o Entrudo morreu. Agonizou com a chegada das máscaras de Zorro, pistolas de água, peidos engarrafados, estalinhos, bombinhas, e foi-se de vez quando a televisão trouxe o Carnaval, o negócio carnavalesco se impôs, a alegria plastificada se generalizou.
Já nenhuma criança queria passar por campónia, o Mundo tornava-se coisa séria. Rir, brincar, jogar, sem dúvida. Mas vestida a rigor, respeitando os cânones. Fazendo como os outros, para não destoar. Ao Entrudo chocalheiro e chocarreiro sucedeu o Carnaval comercial e consumista.

FOTO: La Coruña, 2004

domingo, 10 de fevereiro de 2013

A batalha de Aljubarrota (Gheke Pepe, 1385)

E a batalha não começa. Do lado castelhano parecem parlamentar. A escolher talvez a melhor estratégia para nos desbaratar. Ou a decidirem que não merecemos que lidem connosco, povo miúdo de ventre ao sol, jovens infanções, chamorros nos chamam, pouca glória poderão cobrar da vitória, melhor será prosseguirem sem mais delongas a caminho de Lisboa, em breve içarão sem oposição no castelo o estandarte de Santiago, e depois enforcar-nos-ão como a salteadores um após outro ao longo das estradas e caminhos de Portugal, ou seremos foragidos a monte, ou pediremos perdão a tão alto e poderoso senhor, como será então D. João de Castela, por nossos erros e desencaminho...

Eis que dá sinal a trombeta castelhana, som duro, ingente, apavorador, levanta-se clamor ensurdecedor do campo inimigo, disparam trons e do nosso lado tombam mortos dois escudeiros, apavoramo-nos, havendo por mau presságio aquele início de batalha, mas tranquiliza-nos outro escudeiro que afiança ter visto aqueles dois a matarem um prelado durante a própria missa: o Senhor não quis que aqueles pecadores fossem quinhoeiros da glória que nos prepara.
Como o toiro orgulhoso que investe cego por pedaço de pano que o enerva e impede de ver o gume afiado do ferro que o vai trespassar, trotam briosos os cavaleiros, lanças ao alto, depois esporeiam as montadas em carga feroz, o chão foge sob as patas dos cavalos, na vanguarda, antes que a nuvem de pó os esconda da vista, avisto o conde D. João Afonso e Gonçalo Eanes de Castelo de Vide, trigoso homem de armas que prometera ser o primeiro a ferir de lança — e pouco mais atrás, meu próprio irmão, que reconheço pelo pendão. Desperta-nos do torpor D. Nuno, com ele gritamos a plenos pulmões S. Jorge, Portugal!, e aprestamos os nossos corações para receber a nossos inimigos como o Condestável recomendara: apeados, pés bem fincados no chão, lanças em riste, passos lentos, sem temor do número nem do clamor do inimigo, havendo fé em Deus, na Virgem sua mãe, na nossa coragem e no amor à pátria.
O ímpeto da carga da cavalaria é afrouxada por uma chuva contínua de flechas e de farpões, que obriga os cavaleiros a protegerem-se sob os escudos, cavalos e homens tombam por terra, relinchos, gemidos, gritos horríveis dos feridos dão lugar à jactância anterior, acorrem os peões a socorrer a seus senhores, mas também eles se vêem empecidos pelo tombar constante de setas e virotões e não poucas vezes se mistura ali o sangue vilão com o nobre e o animal. Os archeiros ingleses, calmos como a morte, já não disparam sincronizados à voz nuvens de setas contra o céu, antes visam os alvos próximos, o cavalo de um, a perna deste, o olho daquele se acaso levanta o bacinete para encontrar caminho por entre as nossas covas de lobo. Desorientados com esta guerra viloa, tão contrária às leis da cavalaria, os inimigos partem as lanças, demasiado compridas para combater a pé, apeiam para enfrentar a nossa peonagem que, se os derruba, prontamente lhes levanta o elmo e faca no olho dá a escolher: resgate ou morte. E sempre, sempre, os frecheiros ingleses a visar alvos que logo tombam, atroa o chão a queda das pesadas armas, eis os inimigos que se aproximam, empurram os nossos, penetram no campo e julgando mais fraca a nossa ala, sobre ela carregam ferozmente. O meu jovem escudeiro, que o anterior, Antão Enes, morrera de peste em Lisboa, lança na mão, treme como varas verdes, jovens fidalgos fazem tenção de recuar, foi, vejo-o agora, um erro permitir que estes moços inexperientes nos sofrimentos da guerra tivessem uma ala à sua responsabilidade, acode meu primo, sempre destemido: — A mim, portugueses! A mim! E lança-se brioso contra o próprio mestre de Santiago, com poderoso golpe de facha o derriba — para sempre, saberemos depois. A seu lado, também eu me atiro aos mais nobres do inimigo, para isto nascemos, não para enganar judeus e mouros por um prato de sardinhas. Que os nossos nos admirem, que os inimigos nos receiem. Dizia meu avô: quando a batalha degenera em corpo a corpo, sempre de sorte incerta, não interessa a técnica, não importa a vida, nossa ou dos nossos inimigos. Só há uma coisa a fazer, carregar sobre eles, bater com todas as forças do corpo e da alma, romper cotas de malha, cortar armaduras e corpos, decepar membros, perfurar olhos, pisar a vilanagem que os protege, matar, matar, cavalos, cavaleiros, peões — até que o estandarte inimigo tombe também ele por terra.
Mas por cada um que derribávamos dez ou vinte caíam sobre nós e nos cercavam. Contra o número não abasta a coragem e empurraram-nos para o centro do quadrado, rota a nossa ala, tantos, tão fortes, tão valentes eram os castelhanos e tão esforçados os fidalgos portugueses que a seu lado se batiam galhardamente, contra a própria terra embora.
Então, vendo o desespero de tão poucos esmagados por tantos, acudiu-nos o próprio Rei, que galopou em nosso socorro: — A mim, irmãos, cá sou el-rei, bradava, para que o seguíssemos. E na confusão de corpos vivos, mortos, de homens e de bestas, lançou fora a lança, que de pouco préstimo era naquele caos, e começou a ferir de facha, derribando inimigos como se fora simples cavaleiro desejoso de cobrar glória. E a batalha recrudesceu renhida, cruel, entre relinchos de cavalos, gritos de cavaleiros, gemidos de feridos, pedidos de misericórdia agora inúteis, que não se faziam já prisioneiros pelo resgate, e a terra empapou-se de sangue nosso, dos nossos mercenários, dos nossos inimigos, todos feitos irmãos na mesma morte. E quando caía já o Sol atrás do outeiro vizinho, tombou por terra, não sei como, o estandarte castelhano e o meu escudeiro, ardido guerreiro passado o pavor inicial, deu em gritar: — Já fogem! Já fogem!
E os castelhanos, desorientados, não compreendendo o que se passava, sem se aperceberem de que estavam a ganhar, deram em fugir e nós, antes que reorganizassem, demos em cima deles, acossando-os sem piedade. Depois foi a matança ignóbil, aquele momento de todas as batalhas em que os cobardes chacinam os valentes que se rendem, nem os feridos que agonizam por terra poupam, para os roubar, para vingar a sua própria cobardia. E na noite que se seguiu, até mulheres, soube-se mais tarde, mataram a espanhóis com quem se haveriam deitado alegremente houvessem sido eles os vencedores…
Vae victis!
(O pano de fundo histórico, roubei-o a Mestre Fernão Lopes; o emocional, a outro Mestre, Camões, Canto IV, estâncias 12-50 de Os Lusíadas)
Gheke Pepe

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A peste em Lisboa (1385)


Lisboa estava caótica, fétida, os excrementos amontoavam-se nas ruas e vielas, cobertos de moscas, o ar irrespirável da fumaça do alcatrão e azeite de purgueira que, talvez influenciados pelo nome, queimavam constantemente num esforço vão de purgar a cidade dos miasmas, de manhã à noite ecoava o dobre plangente dos sinos a finados cortado pela gritaria atroz das carpideiras, acompanhada de imprecações e ameaças contra os judeus, causadores daquele castigo de Deus por termos entre nós semelhante canalha ímpia. Eu via-me então a enfrentar a turba para defender minha mulher, minha filha, a sua família, perseguido como anos atrás — parecia-me a uma vida de distância, o que não surpreende, que as vidas então soíam ser breves — quando me acusaram vilmente de haver abusado de um rapazinho. Talvez, pensava então, os desígnios divinos sejam realmente insondáveis e Ele tivesse poupado Esther e nosso filho aos desmandos e horrores do nosso tempo: como era possível, depois de séculos a viver lado a lado, é certo que com desconfianças constantes e brigas frequentes, que não tivéssemos aprendido a tolerar os judeus e as suas diferenças? Como era possível que, em nome de um rabi que nos ensinou a amar o próximo, os perseguíssemos cruamente e os matássemos barbaramente? Sim, também eu matei. Porém, a salteadores, e na guerra a outros quiçá melhores do que eu, que igual me haveriam feito se, por sorte ou por ser mais novo, me não houvera antecipado. 
Porém, nas ruas de Lisboa apedrejava-se a mulher ou a criança judia, queimava-se gente igual a nós apenas por ter religião diferente e porque, não podendo fazê-lo à peste, se virava a cólera contra os mais fracos; queimava-se bruxa, porque alguma vizinha denunciara pobre mulher por supostos feitiços com que lhe haveria roubado o homem, como se para tal não abastasse a juventude, o maior ardor entre lençóis, o melhor feitio, ou um palmo de cara menos estragado pelas bexigas…
Todos os meus conhecidos haviam sumido da cidade. Um dos últimos foi meu primo, outra vez acusado de sodomia — fugira apressadamente antes que o meirinho lhe deitasse mão; colocara-se, constava, ao serviço do Duque de Nápoles, aí exercendo o seu mester de homem de armas; D. Soeiro fugira à peste e refugiara-se com a família na sua quinta de Cascais, onde tentava conseguir maridos para as filhas, todas elas prenhes em fim de tempo, como querendo contrariar a mortandade que tomara conta da capital; Hermengarda morrera da maleita que consigo levou também o fiel preto que nem espada nem navalha atemorizavam. Vendo-me só, resolvi também eu abandonar a capital, não na esperança de que longe dela, sem ter presentes lembranças de felicidade anterior, meu mal esmorecesse, antes para me enterrar em Lamego como num túmulo, enquanto não chega a hora de para um de pedra ser carregado.
Gheke Pepe (inédito)

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Les vieux amants

Foi numa noite de 1973, no Big Ben, um café de estudantes na zona da Escola Politécnica, que começámos a namorar. Com um beijo. Era o seu aniversário, comemorado com simples bica.
O ar estava irrespirável da densa fumaça do tabaco, mas nós, alheados do Mundo, vivíamos a alegria incontida, como a da donzela que oito séculos atrás cantava "Os amores hey!", temendo embora que tudo se desmoronasse pouco depois caso fosse preso, que, à meia noite, tinha encontro com um camarada do meu Comité de Luta Anticolonial (CLAC) para fazermos pinturas alusivas ao 4 de Fevereiro, data oficial do início da guerra colonial. Eram apenas cinco, mas em lugares vigiados pela polícia, e as inscrições eram palavrosas, quilométricas. Conseguimos completar duas, as restantes três começadas  mas interrompidas por perseguições policiais.
Quarenta anos depois, tetra avós, continuamos os mesmos adolescentes que então se apaixonaram. Canta Brel, numa das minhas canções favoritas, que "precisámos de muito talento para sermos velhos sem ser adultos." Nós também.

FOTO: tirada por essa altura nas escadas para Económicas, junto a São Bento

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Empenado

A construção da estrutura desta estufa exigiu-me muito trabalho de marreta, em más condições: chuva, frio, lama... Resultado: dor de costas, que perdura desde domingo passado e me impede de participar no Treino de Instrutores e Avançados (karaté), amanhã, em Paredes de Coura, dirigido pelo Sensei Vilaça Pinto. Um abraço para o mestre e para os participantes. Oss!