Em 1972, esta Remington, já bem na meia-idade, acomodada a existência sossegada, rotineira, burocrática, foi emprestada à associação de estudantes do Instituto Comercial de Lisboa. Descontente com os textos que nela escreviam, o director mandou a polícia encerrar a associação mas, antes que a máquina de escrever voltasse para as mãos do inimigo, jovem revolucionário expropriou-a para aparelho técnico clandestino. Passou então, com as teclas a tremerem aflitas, a bater panfletos em stencil, sempre temerosa de que o seu matraquear no silêncio da noite fosse ouvido por vizinho bufo e denunciada à Pide, nesse tempo glorioso em que tipografia clandestina dava direito a dez anos de prisão em Peniche.
Foram sendo presos os revolucionários que, com mais ou menos dedos, batiam os panfletos cheios de chavões, lugares comuns, apelos incendiários à guerra do povo à guerra colonial, vivas ao presidente Mao, morte aos sociais-fascistas. Graças à coragem de muitos deles, alguns dos quais sofreram nas mãos da Pide vicissitudes terríveis, coisa de duas semanas de tortura do sono, afora a estátua, os espancamentos diários, as drogas, apenas caiu nas mãos do inimigo nas vésperas do 25 de Abril, no Pinhal de Leiria, quando um deles foi surpreendido pela guarda republicana na mata em que se acobertava clandestino, a preparar-se já para a vida de guerrilheiro. Com as balas a assobiarem sobre a sua cabeça, viu-se forçado a deixá-la para trás. Mas logo após o 25 de Abril apresentou-se temerário na sede da Pide em Leiria, a exigir de volta a máquina de escrever, o duplicador, o saco cama...
A velha Remington voltou às suas tarefas, quase a escrever sozinha, que cada tecla conhecia de cor o estilo, o arrazoado panfletário. Mas começara uma guerra suja no interior do partido contra a "linha de direita" e os seus desvios, as expulsões dos melhores multiplicaram-se, ficaram os medíocres, talvez algum teimoso mais bronco. Esquecida pelo partido em minha casa, a máquina conheceu curtas férias enquanto fiz obrigado a tropa.
Depois disso, ainda trabalhou muito. A bater stenceis com testes, a fazer trabalhos da faculdade, que eu voltei aos estudos, a escrever páginas do que viriam a ser, muito mais tarde e completamente transfigurados, os meus contos e romances.
Os computadores condenaram-na, finalmente, à reforma. Coitada, há muito que não escreve, entrevada, desaparafusada, sem fita, com falta de peças, as letras das teclas sumidas, gastas pelo uso. Ei-la, a gozar merecido descanso.
5 comentários:
É assim que gostava de escrever. Directo. Escorrido. Sem floreados. Com conteúdo.
Grande texto Zé.
Abraço.
Também eu gostaria de conseguir escrever simples, directo, escorreito, sem floreados, com conteúdo. À Camilo. Mas está-me na massa do sangue a verborreia lusa, tão bem identificada por Eça de Queirós:
"O português nunca pode ser homem de ideias, por causa da
paixão da forma. A sua mania é fazer belas frases, ver-lhes o brilho,
sentir-lhes a música. Se for necessário falsear a ideia, deixá-la
incompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em beleza, o desgraçado
não hesita... Vá-se pela água abaixo o pensamento, mas
salve-se a bela frase.
— Questão de temperamento — disse Carlos. — Há seres inferiores,
para quem a sonoridade de um adjectivo é mais importante
que a exactidão de um sistema... Eu sou desses monstros.
— Diabo! então és um retórico..."
Muito obrigado.
Deves ter ficado um tanto curioso com a "Sheep". É que não reparei que a minha cria mais nova tinha andado por cá e entrei com a conta dela...
Abraço
Deves ter ficado um tanto curioso com a "Sheep". É que não reparei que a minha cria mais nova tinha andado por cá e entrei com a conta dela...
Abraço.
Reinaldo
Mais intrigado do que curioso. Um abraço.
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