Ensinava a minha professora da
primeira classe — o que é a memória de uma criança! — que se podia dizer de
ambas as formas. Lá vivi, nessa aldeia dos arredores de Alcobaça, entre os seis e os sete anos, lá volto de vez em
quando, em busca de referências que se ajustem às imagens bem nítidas das
minhas recordações.
Em vão. Quase nada corresponde. Nem
sequer encontro a casa térrea onde morámos, de pátio acimentado, a represa que
me fascinava, a mim, que nunca vira tanta água, tão límpida, e nela nadavam
rente ao fundo cardumes de peixes enormes — tudo então era enorme! — e cintilavam difusos ao passarem por redemoinho que se formava
junto à conduta de madeira enegrecida que canalizava a água para a roda da
azenha, de cujas pás escorria cantante para a vala que a levava de volta ao ribeiro — onde uma manhã afoguei gatinhos,
mandado pela minha mãe. Um deles, malha branca na cabeça, mais teimoso, nadou para a margem e eu, com a frieza dos meus seis anos, com uma cana empurrei-o de
novo para a correnteza e a morte. Algo me deve ter tocado, ou a crueldade do
acto, ou a resistência do gatinho, que ainda nem os olhos abria, para nunca
mais ter esquecido o episódio. E nunca mais afoguei gatinhos…
Lá está a estrada nova, que vi
construir, cujo alcatrão derretido pelo calor do Verão se me colava aos pés
descalços. A estrada "velha", por onde ia para a escola. Uma tarde,
voltei atrás, apavorado com bicho, e a ninguém dizia o nome, os rapazes,
supondo que era cobra, armaram-se com paus e pedras e acompanharam-me sem que
eu confessasse que o bicho aterrador era simples libelinha, a que chamávamos
tira-olhos, e eu fugira receoso de que me arrancasse os meus... Estrada velha
onde vi noutra tarde rapazes que se divertiam a masturbar o longo pénis de um
burro. Estrada onde surpreendi a garotada caminhando empoleirado em andas, que
eu mesmo construí, a partir de descrição ouvida a meu avô, em ida à aldeia — e
logo eles, invejosos, fizeram muitas, melhores, mais altas do que as minhas,
mas eu desinteressara-me delas e fazia rodeiros com rodas de beterraba, que
logo se desfaziam e dava aos porcos, às galinhas.
Na frente da casa ficava a padaria,
onde me enganaram pela primeira vez, levando pão sem pagar — pagaram-no os
empregados, que eram os meus pais. Recordo o quarto onde, luz acesa, li e reli
o suplemento de sábado do Diário Popular, Ria Connosco, intrigado com o desenho
de uma sereia, a primeira que vi; ao lado, no divã, a minha irmã, bebé de ano,
dormia tranquilamente sob o meu cuidado, consolada com o biberão de água com
açúcar que lhe dera. Eu, inquieto, assustado, com a demora dos nossos pais
tinha medo de adormecer, passavam as horas, e eles sem aparecer, eu sem saber
deles!
Era noite alta quando chegaram,
tinham ido à terra na motoreta pensando demorar pouco, mas no regresso souberam
que estava emboscado polícia da Viação e Trânsito na caça às multas — dois na motorizada, o que era proibido, a pendura sem capacete... E estava por pagar outra, trazia-me o meu pai na motoreta, e o
polícia surpreendeu-nos numa curva junto à barragem da fábrica da Fervença, em
vão lhe falou o meu pai ao sentimento: tinha-me levado à terra a ver os meus
avós, tão pequeno não podia fazer a jornada a pé...
Nada esqueci. Só não consigo encontrar a Chaqueda ou Chiqueda da minha infância, e
ela, no entanto, está lá, irreconhecível sob as novas casas, desfigurada pelos
arruamentos. Muito mais bonita, luminosa, com uma história em cada pormenor...
FOTO: azenha que não é a da minha infância, antes do restaurante onde casou a Sofia.
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