O povo. Espezinhado, oprimido durante meio século — sem erguer a voz. Veio o 25 de Abril e era ouvi-lo gritar que jamais seria vencido. Na vanguarda, o sr. João: chegara a hora da mudança. De fazer cooperativa, onde pobres e ricos entregassem a fruta, as uvas, e recebessem justa paga.
Defendia a ideia há muito, no café, no largo, respeitosamente escutado — afinal era o senhor João, proprietário de muitas terras, empregador de servos —, mas, mal virava costas,
— O que ele quer sei eu!
Sabiam. Que toda a gente é igual, todos querem tudo para si, nada para os outros. Que Deus fizera torto o Mundo e não havia dilúvio que o endireitasse. Que o homem é o ladrão do homem. Não que negassem razão ao sr. João. Bem sabiam que os intermediários vendiam em Lisboa os pêssegos cinco vezes mais caros. Que penavam para receber o dinheiro do vinho vendido, esmolando adiantamentos junto dos compradores, figurões da terra, os quais pagavam quando e como queriam.
Mas no minifúndio os camponeses têm dupla personalidade, simultaneamente proprietários e assalariados; cuspiam nas mãos, como se ainda segurassem o cabo da enxada, empurravam a boina para o alto da cabeça, acenavam afirmativamente, sim senhor, uma cooperativa é coisa boa, isso é que nos resolvia as coisas, mas mal o sr. João virava costas costas lá vinha
— O que ele quer sei eu!
Desconfiavam dele, bem se via. Era ateu. Contra o regime. Desconfiavam da família: um tio, republicano velho, estivera envolvido nos motins contra Salazar e, murmurava-se, em morte de homem. Um irmão, desertor, estava fugido em França.
Veio o 25 de Abril e o sr. João assumiu-se: era da CDU. Para os camponeses — comunista, como sempre tinham suspeitado.
A cooperativa avançava, empregava gente na abertura dos alicerces:
— O que é que fazes agora?
— Ando na construção da adega dos comunistas!
Nunca passou das fundações. Matou-a a caça aos comunistas, no Verão Quente de 75. Pouco importava se eram militantes ou meros simpatizantes. O ódio ancestral ao jacobinismo, aos pedreiros livres, aos ateus, renascera com as ocupações de terras no Alentejo, e os mais raivosos eram aqueles que de seu pouco iam além dos sete palmos que nos esperam no cemitério.
A cooperativa, que comprara uvas, não as pagava, que o vinho não escoava, perdidos os mercados africanos com a descolonização.
Pôs-se a esperança na ajuda revolucionária:
— A União Soviética compra o nosso vinho!
Não fazia diferença o serem vermelhos — contanto que o quisessem. E durante algum tempo sonhou-se largo, seriam muitos milhões de bêbedos eslavos a trocar o ruim vodka, que tanto mal faz à saúde, pelo nosso tinto — quem sabe se graças a ele se operaria o terceiro milagre de Fátima, a conversão da santa Russia. Mas os tempos não estavam para milagres, e a fraternidade revolucionária era mera propaganda. O vinho não se vendia.
E numa noite homens revoltados pintaram em letras vermelhas no muro da casa do sr. João
Pequeno Cunhal
Quando é que pagas as uvas do pessoal?"
2 comentários:
Sim, o medo do (e o ódio ao) comunismo estava muito ligado às crenças religiosas, ao ser ateu.
Russos a beber tinto?!
Sonhos... Sonhava-se muito.
Cristina, estou convencido de que passaram os anos, mas não mudaram as mentalidades. O ódio ao que é diferente continua bem vivo, rasca, animalesco. Basta ler os comentários em certos blogues e jornais. Um nojo. Ser de esquerda ou de direita não devia cegar a tal ponto.
Também o sonho de que outros resolvam os nossos problemas nacionais não passou, apenas assumiu novas formas, novos protagonistas -- os quais são insultados publicamente nas manifestações por não acorrerem lestos a espalhar o seu dinheiro sobre os nossos problemas
Assim, ao escrever sobre o passado estou a escrever sobre o presente e, receio, sobre o futuro...
Obrigado pela visita.
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