Em mais uma tentativa -- fracassada -- para animar a minha mãe e interessá-la pela vida, na convicção ingénua de que precisa de pôr entre parênteses a dor física e a outra, bem pior, a de sentir que o seu tempo está a acabar, levei-a à nossa aldeia e à sua casa. Aparentemente, nada disso a alegrou: nem deitou olhadela às flores do jardim, lindas apesar de não serem tratadas há ano e meio, nem fez ronda pela casa a ver se tudo estava como tinha deixado, nem se entregou a conversa alegre com as familiares e vizinhas, que, sabendo-a chegada, logo acorreram a fazer-lhe companhia animada e animadora. Enfim. Só me resta evitar o contágio, se é que ainda vou a tempo, para me não tornar igualmente azedo, desinteressado, egoísta. Porque, diz o povo, quem lida com um coxo, ao fim de um ano, coxeia.
Pois, à chegada, entrei pela Rua do Sol a ver se a minha tia, sua irmã, estava em casa. Mal parei, surge vizinha alegre, "Priga", estás como o vinho do Porto...", a minha mãe prefere contar as suas maleitas, reais e imaginárias, distraí-me com a conversa, quando se afastou saí a tocar a campainha da minha tia, não estava -- e, ao voltar para o carro, vejo-o lançado em marcha atrás rua abaixo, a minha mãe dentro. Corri para o alcançar, mas ele acelerava na descida, consegui abrir a porta, sempre correndo tão depressa quanto podia, mas não pude entrar, que o carro ia, como disse, em marcha atrás. Antes que embatesse contra a adega da Tia Irene ou despencasse pelo pomar vizinho abaixo, atirei-me para dentro, metade do corpo de fora e, sem olhar sequer, puxei o travão de mão.
Depois, já em casa, reparei que as mãos me tremiam como varas verdes. Nunca antes, em quase quatro décadas de condução, me esquecera de travar o carro. Felizmente, em ocasiões de perigo, reajo sem pensar. O medo vem depois.
5 comentários:
Fogo...! Até me encolhi na cadeira só de ler. Que susto...!
E que bonitas as suas palavras sobre a sua mãe. Sei bem o que isso é. A idade é uma coisa tramada e, então, quando é mal que 'ataca' os nossos mais próximos, faz-nos estragos em nós.
Valham as flores que estão bonitas, apesar das saudades da 'jardineira'.
A medicina salva vidas... que depois desistem de viver. Penso frequentemente que será egoísmo a motivar os meus esforços, talvez a querer que tudo continue na mesma. Ou para que a consciência me não pese. Todos os dias decido desistir. E depois quase forço a minha mãe a que se mexa, a que converse, faço orelhas moucas às suas lamúrias em tentativas vãs de lhe mudar o pensamento, de lhe injectar genica...
Nem sempre a idade é tramada: as excepções como Manoel de Oliveira, Mário Soares, Rentes de Carvalho sugerem que não precisa de ser uma espera sofrida da morte.
Pois o susto que apanhei foi sério. Felizmente sem consequências.
Esteve com a vida por um fio - e por várias vezes pensámos que não escapava, ao vê-la intubada, inconsciente, longe de ser a pessoa que foi. Quando milagrosamente recuperou, para além do alívio ficámos todos gratos e felizes por ter escapado. Todos menos a avó, seja por não ter noção do que lhe aconteceu, seja por se ver sem a saúde que tinha antes, seja pela idade ou por já não ter interesse na vida que lhe ficou.
Quanto ao Zé Rambo: imagino a aflição. Mas fez-me lembrar da outra vez em que te atiraste a rebolar para o chão com o portão da garagem mesmo a fechar, mesmo à filme. Um dia destes as aventuras do Zé Rambo já dão livro!
Pensei muito antes de comentar.
Dizer-te que já tive essa experiência que tens com a tua mãe não te ajuda nada. Também não és homem para lamechices. Pois bem Cipriano, a tua mãe está viva. Com vontade ou a contra gosto (agora não sei como isto se escreve) está viva. Não desistas nunca. Alegra-te por cada dia que a tens contigo. Nem deixes nada por dizer ou manifestar. Ninguém está preparado quando ela se for. Mas estarás em paz contigo.
Quanto ao episódio do automóvel, se não envolvesse quem envolveu até dava para rir. Felizmente sem consequências como dizes.
Um abraço solidário.
Reinaldo, muito obrigado. Não desisto, mas desanimo por vezes.
Um abraço.
Z+e
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