—
Talvez
o Senhor tenha morrido de velhice…
Esther
assustou-se com a heresia da irmã:
—
Não
digas nunca essas coisas à
frente
do pai!
—
Porquê?
Tudo morre. E o Senhor já
era
tão
velho…
Também
eu protestei. E, mesmo se tivesse morrido, havia o Filho.
—
Pois,
mas é
tão
bonzinho que O mataram na cruz. Como poderia pôr
fim aos desmandos dos homens? Sempre pronto a perdoar o mal aos
inimigos! Vede o Pai! Olho por olho, dente por dente. Cá
se
fazem, cá
se
pagam. Ou o homem se portava bem, ou o castigava. E hoje, com tanta
imoralidade, tanta depravação,
tanto mal, não
intervém,
não
lança
sobre nós
nem as águas
do Dilúvio,
nem o fogo de Sodoma e Gomorra.
Concluiu
tristemente: —
Deus
está
morto.
Talvez até
nunca
tenha nascido, talvez tenha sido um sonho nosso, alguém
em quem depositámos
a esperança
de que zelasse pela ordem do Mundo. E o Mundo nunca teve ordem. É
sabudo
que as coisas pioram sempre, as crianças
envelhecem, as mais fortes construções
humanas esboroam-se em pó,
à
civilização
segue-se inevitavelmente a barbárie…
O
nosso povo foi feliz no tempo do Pai Abraaão?
Pois veio o cativeiro da Babilónia.
Foi feliz com o rei David e seu filho Salomão?
E veio o cativeiro no Egipto, a dominação
romana, a diáspora.
Há
séculos
que amargamos, que expiamos culpas que não
são
nossas, e o pior, tenho a certeza, está
ainda
para vir!
Eu
queria pôr
termo àquela
conversa, não
por me ofender, que em crianças
todos dizemos inocentes disparates e blasfémias,
como essa de que Deus estava morto ou talvez nunca tivesse nascido, e
além
disso os judeus têm
a sua própria
religião,
os seus costumes e autoridades, mas por me desagradar ouvir aquela
jovenzita franzina a discretear sobre a Divindade como se fora doutor
da Igreja ou tivesse longa experiência
de vida com honesto estudo misturada.
—
Nunca
sonhas com coisas boas? —
e,
maroto, atrevi-me: —
Com
rapazes?
Abanou
tristemente a cabeça.
—
Vim
ao Mundo para sofrer. Como o teu rabi Jeschoua Natzarieh: para expiar
os pecados dos homens. Como Ele, sofro o mal que houve, o que há,
mas sobretudo o que haverá.
Inédito meu. A acção situa-se no séc. XIV, quando os verbos terminados em -er faziam o particípio passado em -udo, e.g., saber, sabudo.
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