-- O teu pai é gordo!
-- E o teu é bêbedo!
Embrulham-se à pancada. Já o Ramalho, magro, seco, nervoso, monta a cavalo o Filomeno, arranca-lhe os óculos sem os quais quase nada vê, esmurra-o. Desesperado, o outro mete a mão no bolso, abre a navalha, crava-a na coxa do ex-amigo. A dor, o sangue a jorrar, fazem o Ramalho desmontar de salto, abalar a correr imparável escola fora, a tentar estancar a hemorragia com a mão. A custo, seguram-no e levam-no ao gabinete médico para curativo.
-- O que foi isso?
Cala-se, por única resposta lágrimas.
A notícia voa, depressa chega a casa: -- O seu filho foi esfaqueado na escola!
Os país exigem saber: com quem brigou, quem o anavalhou?
Não fala. Gritam, ameaçam, passam às bofetadas. Em vão. Correm-lhes as lágrimas pelo rosto, a boca nada diz. Nada diz no dia seguinte, interrogado pelo director. Nem mentiras, como ter sido ele a picar-se acidentalmente, nem ter sido ferido involuntariamente em brincadeira.
Dois dias de suspensão. Por respeitar a lei do silêncio.
No domingo seguinte choveu, a formiga de asa deixou os formigueiros em bandos compactos. É a altura de armar aos pardais com agúdias. Só o Filomeno sabe como as prender nas armadilhas, segredo da terra que não revela a ninguém por mais amigo que seja. Aproximamo-nos, a tentar descobrir a técnica. Chega-se também o Ramalho, ainda um pouco à distância. O Filomeno convida-o: -- Queres vir?
O outro aceita. E ei-los novamente inseparáveis, agora aos pássaros, mais para a tarde às bogas no Lis, pescaria em que o Ramalho excele. Há-de chegar Junho, férias, correrias e banhos em pelota, calor, preguiça, conversas inflamadas sobre raparigas, a fazer crescer as gaitas, cada qual orgulhoso da sua, por entre gemidos a reproduzirem o lamento do Pote-sem-Alma do Eça: "Ai que rico bocado de pequena! Aí quem ma dera aqui!"
Só da briga que um dia tiveram jamais falarão.
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