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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O Portimão (3)


O Portimão endireitara-se. Era o que dizia o comandante do destacamento, cheio de fé na bondade humana. Eu desconfiava. 
-- Aquilo foi o vinho, como ele disse. O raspanete que lhe demos serviu-lhe de emenda. Não volta a fazer asneiras. Veja como anda sossegado, envergonhado até. 
Eu calava as discordâncias. Tinha apenas 21 anos, mas farejava a dissimulação. Via o Portimão como cobra que rasteja humilde, a evitar dar nas vistas, para melhor atacar à traição. 
-- Olhe, dizia-me o major levando-me a passear de braço dado pela parada sob olhares escarninhos dos prontos, -- Pediu-me uma pistola...
Atónito, interrompi o passeio, olhei-o nos olhos: -- Meu major, ele é o armeiro, tem o quarto atravancado com G3! Até em cima de um dos beliches!
E o comandante, pacientemente: -- Eu sei. Mas diz ele que se lhe aparecer alguém de noite ao postigo precisa de uma arma pequenina. Como você está de serviço este fim-de-semana e não temos mais Walters, damos-lhe a sua. 
De sargento de dia, desarmado! Que figura a minha!
O major insistiu. E eu entreguei-lhe a pistola, com balas no carregador, conseguidas com grande dificuldade.
Os recrutas, em plenário dinamizado pelos SUV (Soldados Unidos Vencerão!), tinham aprovado medidas revolucionárias: não rastejar na prova de técnica de combate porque o chão estava lamacento, e não fazer serviços, pelo que na sexta-feira à tarde o quartel esvaziou. 
Desabafei com o alferes que ficou de serviço: -- Já viste a minha figura de palhaço, sargento de dia desarmado? E logo para dar a minha arma ao Portimão, que já tem duzentas...
Tranquilizou-me. Com o quartel deserto, não haveria novidades. -- Olha, a minha mulher e o meu cunhado vêm ter comigo e dormem cá, não faltam quartos livres. Porque é que não vais para casa?
Sair do quartel, dormir em casa, com a minha mulher? Irrecusável. Portanto, desenfiei-me.
Regressei no domingo, antes do restante pessoal. E o pobre alferes contou-me a toirada da noite anterior: o Portimão embebedara-se outra vez e não tendo ninguém com quem brigar na nossa unidade, foi armar desacatos para o bar dos sargentos de um quartel vizinho. Chamado o nosso oficial de dia a repor a ordem, ameaçou matá-lo com a minha pistola... A custo conseguiu levá-lo de volta, teve outras vezes a arma apontada à cara, bala na câmara, sem se poder afastar até que a bebedeira passasse, temeroso pela mulher e cunhado, escondidos na ala dos oficiais...
Não era possível abafar o ocorrido. O Portimão foi recambiado para o nosso quartel de origem, Torres Novas, onde, como contei, acabou caído na parada, atingido por estilhaços, um testículo a menos...  

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