A profissão de professor, aparentemente invejada por alguns, nunca foi de vida fácil. Quando eu estava no activo, costumava dizer que devia ser a única em que só se pode mijar de 90 em 90 minutos. Das poucas que exige concentração total durante hora e meia, para logo, após intervalo minúsculo que mal dá para mudar de sala e ir às sanitárias, voltar ao mesmo. Um olho no burro, outro no cigano. A antecipar problemas, a tentar atalhá-los na origem, antes que pequena fagulha se transforme em incêndio dificilmente controlável. E, simultaneamente, a tentar ensinar algo que reputamos importante. Interpretar um poema, por exemplo.
Trabalha-se por prazer quando as turmas são boas, quando os alunos querem aprender e questionam o professor, exigem dele entrega total. Pelo que sairá exausto, vazio, para descontrair e recarregar após breves minutos de disparates na sala de professores -- para nova sessão. Que pode ser com turma mediana. Daquelas que não se porta mal, apenas se está nas tintas para o que o professor diz. Ou uma da más, talvez com alunos embriagados, alguns aparentemente drogados, outros a provocarem zaragata, com os colegas, com o próprio professor. Talvez façam concursos de peidos, e interrompam constantemente o professor a queixar-se do mau cheiro, a querer abrir janelas para que a arruaça de fora e a de dentro se confundam numa só.
(Dei por mim a desabafar: era professor de Português com formação em literatura e especialização em linguística, hoje trabalho como segurança. Sem os meios necessários e suficientes para impor a disciplina. Talvez por me saberem karateka, nunca me agrediram, embora, por vezes, pouco tenha faltado.)
E o resto. A burocracia estúpida, inútil, ridícula. A roubar tempo, muito tempo, escasso para aquilo que deveria ser o cerne da profissão: o trabalho com os alunos. Os pais, quantas vezes sobrecarregados com problemas, não raro a pedirem ajuda para se tentarem entender com os filhos. A desabafarem os seus dramas pessoais, conjugais, familiares, profissionais. Os avós, que tentam educar, na falta de pais que o façam, os netos. Angústias, sofrimentos alheios que levamos connosco para casa, agravados pelo desespero de pouco podermos fazer para ajudar quem precisa -- o avô cuja neta anda na má vida, o pai cujo negócio avizinha a falência, a mãe desempregada, aquela cuja filha adolescente engravidou...
Os conselhos de turma, As reuniões de grupo e de departamento, de clubes, de projectos. O serviço de exames. O trabalho de corrector, com prazos exíguos, grandes exigências, pressão enorme. E o resto. Tanto, tão fastidioso, que poderia ficar toda a noite a descrevê-lo.
Mas o pior está para vir. Ameaça de desemprego, precariedade, leccionação simultânea em várias escolas. Aumento brutal de horário, sem ter em conta que o trabalho do professor na escola é a parte visível do icebergue. De longe a menor.
Não surpreende, portanto, que os colegas queiram lutar. Se eu estivesse no activo, fá-lo-ia, mesmo sabendo que ia perder. Mais uma vez por culpa dos sindicatos, incapazes de definir uma estratégia de luta que vise a vitória e não a propaganda. Ou porque querem os professores revoltados, descontentes, para os poderem usar quando lhes convém -- ou aos partidos de que são correia de
.transmissão
2 comentários:
Gostei de ler. Fazem falta testemunhos de professores para que a manipulação governamental não tenha o seu caminho tão facilitado.
O seu apoio será, certamente, importante para os seus colegas no activo.
Creio que muitas pessoas desconhecem a realidade vivida nas escolas de há uns anos a esta parte. Gente que entrou para o ensino por vocação, como eu, que trabalhou por prazer boa parte da carreira, viu-a transformar-se em inferno. Causas, culpas? Quanto a mim, nem todas cabem aos vários governos. Porém, não me sinto à vontade para escrever sobre isso -- ainda não passou um ano desde que deixei a escola, eu, que sempre pensei trabalhar enquanto pudesse. Até que...
Muito obrigado pela visita e pelas palavras simpáticas.
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