Rentes de Carvalho
alerta neste post para o desprezo que alguns escritores parecem mostrar pelo
ofício da escrita, ao centrarem o seu labor na história, não fazendo, ou
relegando para outros -- editor, revisor, etc. --, o trabalho fastidioso de
lapidação da frase e de polimento de texto.
Tais autores esquecem
algo que é óbvio para os poetas: o som é tão importante como o sentido, pelo
que, não raro, ao descurarem o trabalho formal, prejudicam o ritmo e a
elegância do texto.
Porém, atrevo-me a
acrescentar aos conselhos do mestre um outro, extensivo, aliás, a todos os conselhos
de todos os mestres: depois de os ter interiorizado, é preciso esquecê-los. Ir
mais além -- ou jamais passaremos de imitadores. Primeiro aprender com
humildade, depois aplicar com zelo, finalmente seguir o nosso próprio instinto,
escrevendo segundo o nosso gosto.
Assim, as assonâncias,
de que Rentes de Carvalho dá abundantes exemplos, tanto podem revelar desleixo
do escritor como evidenciar uma intenção estilística. Neste caso, corre-se o
risco de desagradar a certos leitores, que podem ver nelas expressão de mau
gosto. Outros, pelo contrário, menos presos aos cânones, sabedores de que o
escritor transgride frequentemente a norma, podem deixar-se enlevar pelo efeito
encantatório das repetições.
Com efeito, se tudo na
natureza se repete -- os batimentos do meu coração, nascer e pôr-do-sol, dia e
noite, estações do ano, luzes, formas, cheiros, sabores, sensações, prazeres,
sofrimentos --, se a poesia e a música assentam na repetição, porquê evitar a
repetição de palavras e de sons na mesma frase?
Veja-se o que faz o Padre
Vieira no excerto que se segue e que, contraditando Rentes de Carvalho no que
concerne à utilização das repetições, confirma, no entanto, a sua chamada de
atenção para a necessidade de o escritor proceder a apurado trabalho formal,
palavra a palavra, frase a frase, parágrafo a parágrafo:
Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, - primeiro, membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda; ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar.
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