Cresci por entre superstições, agoiros, sonhos, premonições. O piar da coruja, o uivar de cão, a árvore que floria fora de tempo. Sonhar com água, ter o mesmo sonho três noites seguidas. O que se fazia, e era pecado, o que não se fazia e pecado era. Tudo indícios que, devidamente interpretados, permitiam adivinhar o futuro, decifrar os seus enigmas, explicá-lo até a partir de relações de causalidade que hoje fazem sorrir: sete anos de azar por ter acidentalmente matado um gato, morrer por ter comido laranja à noite, cobra na barriga por ter engolido cabelo, carne estragada por causa da Lua, pão que não levedava por faltar ao fermento a oração "em nome do Anjo Bento eu te acrecento...
Hoje recordo esses vestígios de animismo com um sorriso, alguma nostalgia, muita ternura. Porque se revelavam fraco conhecimento do Mundo e das suas leis, representavam um esforço para o compreender, para reduzir o acaso nas nossas vidas. E havia neles poesia -- como seriam as tragédias sem oráculos, presságios, sinais?
Pois tudo isso quase desapareceu na actualidade. Mas deve fazer muita falta, pelo menos a jornais e "cientistas" sociais, a crer na proliferação de notícias catastróficas com que uns e outros diariamente nos enchem os ouvidos. As pragas de gafanhotos bíblicas deram lugar a catástrofe demográfica, com o país quase deserto em 2060, as vacas magras e os anos de seca a picos de calor no Verão e inundações no Inverno... Que falta de imaginação, senhores cientistas! E de cultura! Leiam a Bíblia, aprendam o que é verdadeiramente uma praga. Já não digo para estudarem História, porque, então, perderiam a fé na galinha dos ovos de ouro que vos alimenta, essa que por ovos põe catástrofes ambientais. E estudem um pouco fora dos vossos cânones. Quanto mais não seja para saberem que catástrofes de dimensões bíblicas são, infelizmente, comuns na história da Terra. Mesmo quando não havia homens a causá-las! E quando proferirem uma afirmação, por maior que seja o vosso grau de certeza, nunca esqueçam que a ciência é o terreno das dúvidas, por isso as asserções devem ser devidamente modalizadas. Por exemplo, em vez de afirmarem que vamos ter picos de calor no Verão poderão dizer que é possível que venhamos a ter situações de calor anormais para a época, tendo em conta os padrões actuais... Em vez de preverem que os oceanos vão subir não sei quantos metros, poderão dizer que é possível que os oceanos regressem a níveis superiores aos dos últimos anos.
Porque o povo não é parvo. Pode ser enganado, e é-o frequentemente, mas tarde ou cedo dá pelo logro. E ri-se de vós.
Por enquanto, somos poucos, pessoas que, como eu, que já apanharam muita chuva pelas costas, cozeram com o calor de certos estios, tremeram com o frio de alguns janeiros, viram cheias, viveram secas, aprenderam que a natureza tem ciclos que o homem desconhece -- que talvez dependam da precessão dos equinócios, ou das manchas solares, ou da actividade vulcânica: lembro-me da erupção de um vulcão nas Filipinas que terá enviado para atmosfera muito mais poluentes do que homem desde o início da revolução industrial. E obrigou os americanos ao impensável, abandonar a base militar de Clark. Mas imputar a causa dos cataclismos a fenómenos naturais não dá pão a ninguém...
Não me ralhem. Reciclo o meu lixo como certamente nenhum de vós o faz. Os restos de cozinha vão para a capoeira, daí para a estrumeira, depois voltam à terra do quintal. Protejo as minhocas, alimento os passarinhos, faço desporto de pé descalço. Só me irritam as vossas profecias, tão sem imaginação, tão sem poesia que não as consigo tolerar. E atrevo-me a fazer, eu mesmo, uma previsão verdadeiramente catastrófica. Ponderem-na, adoptem-na se quiserem, afinal já me aconteceu mais do que uma vez ler-me em blogues alheios sem me ver citado. Aí vai.
No seu extraordinário A Universe from Nothing, Lawrence M. Krauss, procura evidenciar como o Universo pode ter surgido do nada. Porque, sustenta, com base em princípios e leis da Mecânica Quântica que eu não entendo, "o nada é instável." Pelo que assim como o Universo terá surgido do nada instantaneamente -- já estão a ver, não é? -- pode desaparecer instantaneamente, e nós nem sequer daremos por isso. Apenas, como na definição de morte de Saramago, estamos e deixaremos de estar.
Esta sim, é catástrofe digna de teses, parangonas de jornais. Agora calor no Verão, inundações no Inverno... Tenham imaginação, senhores!
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