Começa a nossa narrativa já não naquele tempo em que Jesus
andava pelo Mundo, mas noutro igualmente saudoso, em que a missa era ainda em
Latim para gáudio da miudagem que, ao fundo da igreja, o mais afastada possível
de beatas, pouco compreendendo e menos ainda querendo entender, adulterava as
respostas, mantendo a música: se, do alto do altar, o padre abria os braços e
lançava cantado Dominus vobiscum, haveria
malandro que substituiria o Contigo
também entoado em coro por Merda pra
ti também, com ar tão inocente que se, acaso, olhares indignados se viravam
para trás era por causa da risota e não do dito... Orate frates, dizia o vigário e o povo respondia em vernáculo Oremos, enquanto ajoelhava no cimento da
capela — mas o que se ouvia, se estivéssemos perto e atentos, era moço
sussurrar, ao baixar-se como faria em vinha para arrear o calhau: Caguemos!
Pregado no crucifixo, Jesus refulgia quando a passagem da
sotaina do padre espevitava as velas, como se também ele animasse com os
disparates da mocidade naquele ritual chato e repetitivo e então eu pensava que
se Ele saísse da cruz onde o aprisionaram para todo o sempre, também Ele
quereria escafeder-se do cheiro a cera e a incenso, sem mágoa abandonaria beatas
e templo mal iluminado e, atraído pelo Sol que resplandecia nos vitrais, voaria
aliviado para os céus, sem esperar pelo final daquele santo suplício semanal
que torturava a nossa juventude e O castigava há quase dois milénios...
Corria assim a vida, lenta, chata, sonhando com os vinte
anos, distantes, tão distantes como a eternidade — então eu deixaria a aldeia,
embarcaria, correria mundo sofrendo tempestades, evitando icebergues, sim,
conhecia já a palavra, que já lera e relera Pedro, Pescador de Baleias, e
também eu as caçaria, ou enfrentaria os piratas na Ilha do Tesouro, ou então
chamar-me-ia Zé Crusoé e sobreviveria com arte e manha, sozinho numa ilha
deserta do Pacífico...
O Sr. Prior prosseguia com o ritual e eu alheava-me
novamente, e conversava agora com o próprio Jesus, persuadindo-O a deixar-me
ajudá-lO a endireitar o Mundo, que tão mal andava; já então a Morte, como fim
de tudo, me apavorava, sem que, por isso, me convencesse a retórica do padre
apregoando o Céu, assustando com os padecimentos infinitos do Inferno. Não,
aquele Céu de devoção beata, água benta e hóstias desenxabidas, tresandando a
cera e a incenso, feito à imagem e semelhança de uma qualquer capela mal iluminada,
onde o prazer adviria exclusivamente da eterna adoração a Deus, não me
convencia, como me não seduzia viver a Eternidade na companhia dos velhos e velhas
que assistiam ao Santo Sacrifício dominical.
Sobrevivíamos; hoje, meio século depois, creio que éramos felizes;
naquele tempo, a palavra não tinha significado. Sabíamos o que era doença e
saúde, fartura e miséria, frio e calor, mas felicidade não pertencia ao nosso
vocabulário.
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