Anda o léxico adulterado, ao ponto de me julgar a viver em universo alternativo: os náufragos, os perdidos, são hoje em dia "resgatados" (quanto pagarão pelo resgate?) e já não salvos, ou encontrados; é "tradição" tudo aquilo que nos impingem como tal... Assim, o camarão, as doze passas, o champanhe, o fogo de artifício, tudo é tradição neste país e deste povo que julga ter sempre vivido na abastança. Para avivar memórias a quem ainda as tem, aqui vai um excerto de Entre Cós e Alpedriz sobre a passagem de ano:
Ao cair da tarde já ardiam no Jogo cepos enormes, oferecidos por ricaços e carregados em carros de bois por homens e rapazes. À medida que a noite ia arrefecendo, chegavam-se à fogueira, as costas resguardadas do frio e da humidade nocturna por capuzes feitos com sacos de serapilheira. De tempos a tempos afastavam-se do lume peregrinando de adega em adega, provando a água-pé de um e de outro ou mesmo o vinho novo ainda meio cru, que nos dias seguintes os obrigará a correr volta não volta para o campo com os intestinos desarranjados pela soltura. Não pensam agora nas consequências, antes em festejar o fim de um ano de sofrimento, em beber para esquecer já o próximo e o seu destino de servos grudados à terra do nascimento até à morte, receosos de que se confirme uma vez mais o dito atrás nunca vem o melhor.
Nas adegas, alumiados por ténues lamparinas de azeite que mal permitem que se vislumbrem entre si, discutem o tempo, a chuva que não cessa e apenas lhes permite, no máximo, ter dois dias de jorna por semana, quantas vezes dados como esmola pelos patrões de todo o ano, que entendem que o trabalho nas adegas, debaixo de telha, não tem o mesmo valor que o do campo, suportando as inclemências do Inverno. Habituaram-se há muito tempo a que os servos e as famílias os ajudem de graça nesses serviços, trasfegando o vinho, matando-lhes os porcos, chamuscando-os, desmanchando-os, as mulheres lavando as tripas, os filhos metendo uvas durante a vindima ou entrando nos cascos para os lavar, todos sempre solícitos, sempre prontos a trabalhar de graça em troca do favor que fazem dando-lhes serviço ao longo do ano que nem lhes passa pelas cabeças que possa haver diferente ponto de vista: para os servos, a esmola patronal é apenas ganância e exploração, mas calam-se, por saberem que se protestarem jamais conseguirão trabalho.
Falam das privações, com a comida a escassear em casa de cada um, comentam até mesmo a situação política nacional enquanto limpam com a costa da mão os beiços tintos da bebida e passam a outro o copo para que se sirva, espichando o roxo vinho, conforto e sustento dos cavadores de enxada nesta vida sofrida. Deixarão o copo no postigo do tonel e sairão para a rua uns atrás dos outros, por último sairá o dono da adega, que precisa de trancar a porta, talvez com um cadeado, talvez apenas com um arame — é o suficiente para que ninguém invada a sua propriedade e lhe furte os seus escassos bens: uns botins de borracha já rotos, uma descalçadeira, feita com uma tábua recortada em V para o ajudar a retirar as botas no final de cada dia de trabalho, talvez um velho fato de oleado herdado do pai, uma escudela, uma gadanha, um grande funil de chapa pintado com zarcão para que não enferruje, alguns garrafões com o bagaço da queima do folhelho, uma faca ferrugenta já sem bico, um bocado de sebo para empostigar tonéis ou ensebar o calçado, um mexedor de uvas e pouco mais.
Mais à frente, urinam contra as paredes, Quando mija um Português, mijam logo dois ou três. Depois, regressam à fogueira do Jogo e aquecem-se, sob o borranho interminável, até que um outro convide para provar a sua pinga; demoram apenas o tempo de lá chegarem, acenderem a lamparina, simples torcida mergulhada em azeite rançoso, e a conversa continua, interminável como a chuvinha que não cessa de cair, como a miséria que os não largará jamais.
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