11 de Março de 1975
(Reposição)
No dia 11 de Março de 1975, tinha eu vinte anos e tinha sido incorporado no exército em Janeiro desse ano. Fazia a minha recruta no Regimento de Infantaria de Leiria (RI7) como instruendo e ia começar a minha semana de campo.
Na véspera, fomos informados dos planos: ao alvorecer, chegariam helicópteros, embarcaríamos e seríamos lançados numa pista de técnica de combate, em condições muito próximas do combate real nas colónias. Formámos na parada, equipamento completo (farda nº 3, arreios, cantil, carregadores vazios, G3, etc.) e ficámos horas a olhar para o céu, à espera da chegada dos hélis, um pouco assustados, que a guerra nunca é uma brincadeira, mesmo em treinos.
A meio da manhã, sem esclarecimentos, mandaram-nos marchar e atravessámos a cidade ao toque de tambores, algo vaidosos, o trânsito interrompido à nossa passagem, quatro companhias, rumo aos Marrazes. Ainda de longe, ouvíamos já o estrondo grave do rebentamento das granadas, o matraquear das metralhadoras, os tiros constantes das espingardas G3, até o som amaricado de uma ou outra pistola-metralhadora Vigneron.
As ordens chegavam já berradas, Tá a formar em bicha pirilau! Corram! E nós corríamos, sem saber para onde, atrás do camarada da frente, por entre o chinfrim infernal e o cheiro da pólvora. Então o da frente estaca, detenho-me também, passa camarada enlouquecido, sem que o furriel ranger que o perseguia o conseguisse deter, coxa a jorrar sangue às golfadas: tinham-lha furado com bala real. Gritam-nos para continuar, perco o medo, se já lixaram um vão ter mais cuidado com os outros. E corria por cima de troncos sobre riacho enlameado ainda com muita corrente, rastejava por debaixo do arame farpado enquanto assobiavam balas (o tiro estava regulado em altura, não devíamos levantar a cabeça, por isso a afundava na lama, já nem ligava aos tiros, era certamente munição de salva, nem às granadas de treino, azuis, que lançavam de todos os lados, inofensivas como bombas de São João, e liberto do arame farpado corria pelo leito do riacho, sempre por entre a berraria de oficiais e furriéis, ouço um gritar O pequenino é o melhor, então surge-me pela frente um tenente e lança uma granada ofensiva bem para cima de mim. Mergulho no lodaçal, estoira a granada, só quem já assistiu sabe do poder do estrondo, da violência do sopro, de resto são inofensivas, levanto-me prontamente para continuar a correr por ali abaixo, mas o braço direito, sempre segurando a G3, estava imobilizado. O tenente puxa-o, parece voltar ao sítio, continuo, só mais tarde soube que tinha uma lesão para o resto da vida.
E subitamente tudo acaba para mim, camaradas do meu pelotão recebem-me risonhos, estamos felizes, sobrevivemos, não fugimos, não chorámos, abençoados palavrões, por isso nunca os desperdiço.
Correm boatos: há guerra em Lisboa! A disciplina prevalece, obedecemos às ordens, formar, marchar, começar novas e extenuantes provas, sempre debaixo de berros, tiros, explosões. À noite, para dormir, manta reles, um pano de tenda, com quatro faz-se um bivaque, o frio e a humidade são terríveis, os camaradas de "quarto" vão para uma fogueira, eu, doido com sono, morto de cansaço, durmo ali, sobre água que corre pelo chão, enregelado, a custo me despertam para o meu turno de sentinela, nevoeiro de cortar à faca, que guardo eu ali, no pinhal, sem uma única bala no carregador?
À alvorada, formamos e regressamos ao quartel, a semana de campo durou um dia, não tocam bélicos os tambores, marchamos como vencidos, envergonhados, para não atrair a atenção do povo. No quartel, contam-nos factos e boatos, ninguém sabe bem o que se passa, parece que os pára-quedistas atacaram o Ralis nos nossos helicópteros, há mortos e feridos, e olhamos constantemente para o céu, receosos de que desçam sobre nós, discutimos se os tentamos abater no ar ou os deixamos poisar primeiro, os corpos tremem, é frio, é medo.
Grita fora o povo, somos fascistas e não o sabíamos, mandam-nos para a carreira de tiro interior fazer fogo com as HK21, na esperança ingénua de que o matraquear das metralhadoras afugente a multidão. À noite, mais boatos: os americanos preparam-se para desembarcar nas nossas praias, é a contra-revolução fascista do Spínola que aí vem. E um furriel, apavorado, pede-nos aguardente, vai sair com uma companhia de prontos para defender a Praia da Vieira de ataque iminente dos marines.
Na manhã seguinte, 13 de Março, andamos em pequenos grupos pela parada, nenhum oficial aparece, os furriéis sabem tanto como nós, e desce um héli, não são pára-quedistas, são jovens oficiais, muito jovens, com patentes demasiado elevadas, que logo reúnem com o comandante. Acabamos por saber que foi demitido, o povo está com o MFA e tretas do género, eis que chega a época dos comícios, dos oficiais de aviário, ontem eram alferes, hoje são majores, começam os fins-de-semana cortados por prevenções rigorosas que vem aí o espectro da contra-revolução e esses valentes oficiais juram punho erguido que então morrerão com as botas calçadas a combatê-la – para se esconderem cobardemente no 25 de Novembro, mas essa é outra história, em que também estive envolvido, bem contra vontade.