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quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Publicação do meu quinto romance

 Muitas vezes, em serões de Inverno à lareira, a minha avó trauteava: 

A Maria da Fonte

Não é mulher como as mais

Usa facas e pistolas

Para matar os Cabrais 

E, entusiasmada, contava façanhas dessa mulher lendária, à mistura com histórias inspiradas na sua vivência dos tempos revolucionários da Primeira República. Foram, seguramente, essas memórias que me levaram a escrever o romance Gilvaz, o homem das cicatrizes, que tem por protagonista Adolfo, um jovem jornalista revolucionário enviado ao Minho a cobrir a revolta da Maria da Fonte, em 1846. 

Com uma vida multifacetada — estudante, jornalista, militar, mutilado de guerra, mendigo, professor, outra vez mendigo em final de vida — Adolfo move-se no Portugal oitocentista, conduz-nos pelas aldeias insurrectas do Norte, sofre as vicissitudes da Guerra da Patuleia, em que acaba ferido, coxo e desfeado por cicatriz no rosto, o feio gilvaz que lhe dá a alcunha, conhece a solidão de mestre-escola em lugarejos remotos da Beiras, conspira nos cafés e botequins de Lisboa, Coimbra, Porto, não hesita em participar, já octogenário, no regicídio de 1908, colaborando com o jovem Manuel Buíça, convencido por desilusões e fracassos de que só um Terror à la Robespierre pode limpar a nação dos interesses estabelecidos e dos laços familiares que fazem com que as mesmas famílias se perpetuem no poder desde o Liberalismo.

A escrita deste romance, que se prolongou por três anos de trabalho intenso e árduo, apoia-se em sólida investigação e foi, como disse, motivada pelo fascínio pessoal pelo mito da Maria da Fonte, a heroína da Póvoa de Lanhoso; pretendeu dar resposta ficcional a questão que me intriga: por que falharam todas as revoluções em Portugal nos dois últimos séculos? Mas, se o pano de fundo social e histórico é correcto e reproduz acontecimentos marcantes, já a trama narrativa me levou por caminhos inesperados, pois a história tomou o freio nos dentes e levou a escrita por caminhos pouco ortodoxos…

É chegada a hora de este romance deixar a gaveta onde descansa desde que o terminei, em 2015, tendo apenas saído uma vez por outra para participar em raros concursos — foi distinguido com Menção Honrosa no Prémio Ferreira de Castro 2018, promovido pela autarquia de Sintra.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

As criadas

Nos anos 60, em Leiria, abundavam as criadas de servir. Em restaurantes, tascos, pequenos negócios, casas de hóspedes de estudantes, nas casas particulares, elas, para além de assegurarem todo o serviço que as patroas não podiam ou não queriam fazer,  davam-lhes basto assunto de conversa: não sabiam fazer nada, tinham de as ensinar e manter debaixo de olho não fossem elas meter-se debaixo do magala que rondava a porta, do patrão, até dos filhos adolescentes…


Iam-nas buscar às aldeias vizinhas, crianças ainda, acabada a quarta classe ou antes até, ordenado bem regateado, coisa de nove ou dez escudos por mês, cinco cêntimos de agora, pago aos pais, que naquela época de miséria assim se livravam de boca a comer — o que fazer aos filhos e, sobretudo, às filhas naquele tempo em que sem contraceptivos abundavam tanto quanto o pão escasseava?

Quando saíam juntas, nas idas diárias à praça, ao talho, à mercearia, as senhoras para exibir o seu estatuto de patroas, além de escolher e pagar, as criadas para carregar, os olhares dos transeuntes, as atenções dos vendedores, desviavam-se invariavelmente das matronas rechonchudas, pesadas no aspecto e no trajar, para as criadas, em quem qualquer trapo assentava bem e realçava a graciosidade juvenil. 

Então, a revolta interior das senhoras evidenciava-se nos modos ríspidos, nas palavras azedas que sem outro motivo dirigiam às serviçais, agravava-se ao vê-las radiosas, como se a servidão doméstica se evaporasse…

Importava pô-las na linha, marcar em público a diferença social, obrigá-las a sair com o avental de serviço.

E perante as recusas, bem regadas com lágrimas de vergonha:— Ai pões o avental, pões! Era o que mais faltava, ainda pensam que a criada sou eu e tu a patroa!

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

25 de Novembro de 1975 (reposição)

  Vivi o PREC (Processo Revolucionário em Curso) e o Verão Quente de 1975 com muito medo e uma arma na mão. Sempre que o meu quartel entrava de prevenção rigorosa, o que sucedia todas as semanas, deitava-me vestido e calçado, cinturão com cartucheiras carregadas, G3 com bala na câmara. Era muito influenciável e levava a sério as prelecções do comandante, que nos frequentes plenários revolucionários de lavagem ao cérebro antecipava ataques da reacção; apavoravam-me as medidas logo tomadas, como metralhadora antiaérea na parada para resistir aos aviões Fiat que no 11 de Março haviam bombardeado o Ralis, quartel revolucionário -- e a gritaria constante do povo que se manifestava fora dos muros do quartel soava-me como música fúnebre em filme de terror.

Boataria constante e contraditória. A televisão substituía a programação normal e a informação pelo malfadado hino do MFA ou passava ininterruptamente a estúpida da cantilena em que a gaivota voava, voava. Ambiente opressivo, sem notícias de casa e da família. Soldados enervados passavam-se e disparavam contra camaradas. Outros, apenas para saírem do quartel, voluntariavam-se para barricadas na RTP, desejosos de atirar sobre os reaças -- enquanto o comandante jurava morrer de botas calçadas quando “aí vier a reacção”. 
No 25 de Novembro foi a mim, segundo furriel miliciano com 21 anos mal feitos, que enviaram a erguer e comandar barricadas nas estradas da Atalaia e de Torres Novas, sem outras ordens, sem saber o que ia fazer, como proceder, apenas para o comando fingir que fazia alguma coisa, sem se comprometer embora.
Poucos dias depois, fui saneado, bem como todos os oficiais e sargentos milicianos da minha unidade – para minha grande alegria. 
E o valente comandante da EPAM (Escola Prática de Administração Militar), que jurava morrer de botas calçadas? Pois rendeu-se logo que os comandos de Jaime Neves, de passagem pelo Lumiar, dispararam bazucada contra a porta de armas... 
FOTO: pouco antes do 25 de Novembro. Sou o primeiro ajoelhado à direita.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Ida à pesca das enguias

Num dia de temporal como o de hoje, após uma semana de chuva intensa, constante, dessas em que nada se podia fazer no campo, o meu pai, grande amigo de patuscadas, convidou o meu tio Zé para irem à pesca de enguias nas valas de povoação vizinha, a Ribeira do Pereiro:

Com este tempo, o guarda-rios passa o dia na taberna do Sulpício.

Não está tempo para isso, chove a potes… Encharcamo-nos todos, não nos livramos de pneumonia...

O meu pai, olhando para o céu: Vem aí uma aberta, esta tarde não chove, sentenciou entendido.

E eu, fartíssimo de estar fechado em casa nessas férias de Natal, pedi para ir também, que me cheirava a aventura.

Na minha terra não há cursos de água, pelo que logo após o jantar, como então se chamava ao almoço, nos metemos ao caminho, capuz feito de saco de serapilheira, botins de borracha, cestos para apanhar as enguias nas valas da Ribeira do Pereiro. A meio do caminho, na Salgueira, deu em chover torrencialmente.

É melhor voltarmos para casa, vai ser toda a tarde assim, disse o meu tio avisadamente, vendo a escuridão do céu.

E o meu pai, talvez por espírito de contradição, seguramente por teimosia: És é maluco, estamos quase lá, a chuva já passa, chuva civil não molha militar, e tretas do género.


Avançamos, a atascarmo-nos na terra encharcada, a escorregar pelas serventias e caminhos lamacentos. Chegámos às Cobradas. Lá em baixo, por entre as cortinas de água que uniam céu e terra, nem se vislumbravam as casas da povoação.

O meu tio, mais ajuizado, disse que não prosseguia. Ainda caio e parto uma perna, fico inválido, e tenho de sustentar a família. Não vou.

O meu pai teimava. Afinal, era só descer aquelas ravinas…

E depois metes-te dentro das valas, com água por baixo e por cima? És é maluco!

Era. E teimoso. E odiava alterar planos. Tal e qual como eu sou.

Perto, havia um palheiro sem paredes. O meu tio abrigou-se lá: Daqui não saio enquanto não deixar de chover.

O meu pai avançou, eu atrás. Mas as botas de borracha escorregaram na lama da ravina, caiu e rolou por terra. Voltou para o palheiro.

Eu não te disse?, resmungou o meu tio.

Desculpou-se com as botas de borracha, escorregavam na lama como as enguias. E estendendo-se sobre os caules de milho, logo começou a ressonar, sempre sonolento e exausto, de noite padeiro, de dia agricultor. Todas as noites era o mesmo fandango: a minha mãe, logo às onze da noite, Acorda, Afonso! Ele nada. Ela insistia. Abanava-o, chamava-o, mas o meu pai, que não dormia mais de três ou quatro horas por dia, nem reagia. Lá para a meia-noite, hora a que era suposto “pegar”, começava a rabujar. E, finalmente, já atrasado, levantava-se, retirava a pequena maleta de couro onde guardava o dinheiro da venda do pão do prego na parede, punha a trabalhar a motorizada Mondial, e fazia-se à escuridão da noite, deixando-nos receosos de que, mal acordado, caísse em barranco nas curvas de Cós e por lá ficasse estendido toda a noite.

Como aconteceu algumas vezes. Culpa do fantasma que lá o esperava para o assombrar, ou de pau que se enfiava nos raios, quase sempre do raio do vinho — a sorte de um homem é escapar, dizia, e a sorte só o desamparou muito mais tarde, quando morreu debaixo do tractor.

Fora do palheiro, a chuva incessante, densa, fundia vinhas, cabeços, carreiros, os próprios pinheiros à nossa volta numa mesma névoa, como se as nuvens tivessem descido à terra, o que, por lá sucede frequentemente. Fez-se noite rapidamente. Farto de esperar por aberta, certamente desejoso de chegar a casa e se enxugar à lareira, o meu tio acordou o meu pai. Com as dificuldades costumeiras: O quê? Onde? Deixa-me mas é dormir!

Lá acabou por se levantar, rabugento. Tarde perdida, sem enguias, mas molhados como elas. E como enguias, escorregámos quase às cegas pelos carreiros barrentos, chicoteados pelas vides molhadas, subida após subida até à aldeia e depois a casa, logo a minha mãe, vendo-me molhado como pinto, ralha: Tira-me já essa roupa e vem aquecer-te ao lume!, e para o meu pai: Vêm bonitos, vêm! Que falta de juízo, e levares o garoto com este temporal, sabendo como ele é enfermiço! Amanhã vai estar de cama outra vez!

Não fiquei doente. Mas, fosse do que fosse, nunca mais o meu pai me levou às enguias.

FOTO: uns anos mais tarde, á porta da nossa adega. o meu pai, orgulhoso com o seu atomizador Fontan, o meu tio Zé, o meu primo Fernando e, o mais pequeno, o meu irmão. Eu tirei a foto.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O correio electrónico e eu

 Apesar do filtros anti-spam, sou bombardeado diariamente com montes de lixo, que, antes de mais, marco como “correio indesejado” ; depois, leio apenas os títulos das mensagens de empresas que conheço e com que tive ou tenho relações, e apago-as, excepto se for para assunto de meu interesse ou para fazer pagamentos, que ficam para a noite;  as de amigos com anexos, que não consigo ler no telemóvel, e as que exigem atenção e reflexão, ficam também para a noite…

E é aqui, e por isso, que falho amiúde.  Não  raro, cansado, adormeço no sofá, e as mensagens acabam esquecidas, e com outras à frente, vão-se acumulando, na pasta, depressa desaparecem da vista e só uma pesquisa as traria de volta, se me lembrasse delas…

É a completa ausência de organização e de agenda, comandada pela preguiça. Afinal, o “método de trabalho” que adoptei ao aposentar-me.


Conversas ao telefone

Nunca apreciei as conversas ao telefone.  Ao fim de algum tempo,  a mão que o segura fica dormente, aquece a orelha, mudo para a outra, vejo a conversa a arrastar-se, mas não a desenvolver-se, a impaciência provoca-me bicho-carpinteiro, e os numerosos afazeres com que preencho os dias reclamam insistentemente a minha atenção...

Também nisto me revejo na (minha) avó da Luz. Apesar da solidão, que bem lhe devia pesar durante as longas invernias na aldeia quase deserta, quando me telefonava a conversa era mais ou menos esta: “Vocês estão todos bons? Olha, se cá quiseres vir, já há pêras apanhadoiras. Beijos para todos, fiquem bem e até à próxima, se Deus quiser." E desligava.

Já a sua filha (e minha mãe) se alongava um pouco mais ao telefone; mas, também ela, logo que tinha sabido dos "seus", me despachava, mesmo quando eu procurava prolongar a conversa:

"Mãe, e por aí?"

"Ora, por cá tudo na mesma, não há novidades. Vou desligar que estou a arrefecer. E estou em pé, doem-me  as costas."

Hoje, que tenho a idade de uma e de outra, sinto também que conversar longamente requer ocasião e condições: é preciso disponibilidade, estar presencialmente com os interlocutores, bem instalado, confortável, melhor ainda com comida e bebida à frente — e televisão, computadores e telemóveis desligados.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Gheke pepe: nota de uma leitora

 Continuam a chegar reacções à leitura de Gheke Pepe, como esta, de Maria Emília Simões, que publico com a sua autorização. Muito obrigado! 

“…Entretanto, gostava de lhe dar parte do que foi a minha reacção ao livro - porque penso que todos gostamos de receber este tipo de retorno quando somos lidos. Não pretendo fazer crítica, apenas expor aquilo que senti e pensei. A primeira coisa que salta à vista é que se trata de uma obra escrita com paixão - e isso dá-lhe um impacto muito próprio. Depois, o ambiente da época está muito bem recriado - tanto na linguagem como nos episódios pensados para caracterizar os comportamentos. O contraste entre a crueza da linguagem vulgar usada na descrição do quotidiano, e a doçura e lirismo daquela que é usada para descrever tudo aquilo que diz respeito ao romance amoroso em curso cria uma dinâmica muito interessante. A ambiguidade da situação em torno de Esther, muito bem concebida, cria uma reflexão sobre a atracção sexual que, não sendo profunda, não deixa de levantar questões importantes. Gostei do desenvolvimento da intriga, muito bem entrosada nos factos históricos, e da bem urdida trama. Parabéns! E obrigada por estes bons momentos passados na companhia de Gheke Pepe. Como sabe, gostei de Um Amor Inventado, mas considero esta obra superior: muito bem conseguida!”

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Romance medieval Gheke Pepe

 Doze anos após o ter escrito, (auto) publiquei o romance Gheke Pepe e está à venda, em papel e ebook, na Amazon Espanha.

Segue-se apreciação do Professor Fernando Venâncio, conhecido escritor, crítico literário e linguista que amavelmente aceitou receber um exemplar e pronunciar-se sobre a obra.

 A NAMORADA JUDIA

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José Cipriano Catarino é autor de vários romances, que lhe valeram alguns prémios literários. É nítido o seu domínio da arte de contar e o da expressão. 


Este seu último livro, “Gheke Pepe”, vive dum cenário medieval português, levando-nos ao conturbado país de finais da primeira dinastia e pormenorizando-nos a batalha de Aljubarrota, de 1385, com que haveria de mudar quase tudo neste irrequieto Portugal.


É aqui protagonista um jovem da nobreza pobre da província, que demanda Lisboa em busca de aventura e sobrevivência. O sangue azul garante-lhe tratamento por “vós”, mas não lhe mata a fome, que é muita. O irmão mais velho (e, à época, cabia-lhe a ele toda a herança) bandeia-se com o rei de Castela e é inimigo da própria pátria. Um primo do moço ajuda a aparar o pior, ensinando-lhe a fuga de ceias e alojamentos quando não se traz um tuste no bolso.


 

O pobre fidalgo vê-se, assim, atirado para os prazeres mais rascas e, como se tal não bastasse, é acutilado por dúvidas sobre a própria orientação sexual. As coisas hão-de esclarecer-se, mas, ai, o destino é cego e avaro. O moço vê frustrada qualquer tentativa de existência mais folgada, sendo seu único consolo o amor de uma judia, que lhe saíra ao caminho naquela Lisboa faminta, cercada pelo rei castelhano.


O ambiente medieval do romance é altamente credível. José Cipriano Catarino documentou-se a preceito, e recorre mesmo à exacta letra de Fernão Lopes. Sabemos que o historiador tomava descaradamente partido pelos novos senhores do Reino, mas só picuinhas morais se incomodarão ainda hoje com isso.


O enigmático “Gheke Pepe” era o dístico do estandarte improvisado em Aljubarrota para o pelotãozinho do nosso juvenil fidalgo. Terá a ver com o divertido subtítulo: «Bebiam mais do que falavam»


quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Problemas conjugais

Naquela casa, os conflitos são frequentes. Ao contrário do habitual,  não é o dinheiro, nem a educação dos filhos, ou a interferência dos pais de um ou de outro que os desencadeia. É o uso da língua. Por exemplo, ele conta um problema do seu trabalho:

— Vi-me em papos de aranha…

E logo a mulher o corrige:

— Não é em papos, mas em palpos. As aranhas não têm papos!

Ele detesta ser corrigido. Sobretudo quando crê que tem razão.

-- Quero lá saber se as aranhas têm papos ou palpos! Nunca ouviste falar em metáforas?

— Não desvies a conversa. Sabes muito bem que eu tenho razão. Como sempre.

— Pois, tu tens sempre razão. E sabes sempre tudo.

— Não sei sempre tudo, mas sei que as aranhas têm palpos e não papos.


Passeiam no parque de uma cidadezinha de província:

— Olha, um círculo viçoso!

E ela, sem olhar sequer: –  Não se diz círculo viçoso mas sim círculo vicioso! 

— Não, é um círculo viçoso!

— És tão casmurro! E queres sempre ter razão, mesmo sabendo que a não tens!

— Então olha, e diz-me o que é aquela figura geométrica, redonda e coberta de relva verdinha?


— E depois veio a ovelha ranhosa do Oliveira…

— Ovelha ronhosa, queres tu dizer!

— Sei muito bem o que quero dizer. O Oliveira é um ranhoso dum graxa, que na presença da patroa se põe a balir mansamente, com olhos de carneiro mal morto…

— Então porque é que disseste ovelha e não carneiro?

— Não sabes que quando se quer achincalhar um homem se usa o feminino? Diz-se: ele é um filha da puta…

E prossegue:

— Tenho-lhe um ódio fidagal!

Lá vem a correcção: tens-lhe um ódio figadal!

— Como assim, se o odeio, não com o fígado, mas com altivez de fidalgo?


Sempre a emendá-lo. Se ele diz que vai meter o arroz no tacho, retruca ela que é pôr e não meter. 

— Como assim, meter não é pôr dentro de? Ora se o ponho dentro do tacho…

Se fala no testo, replica ela que é a tampa da panela; se ele lhe pede o alguidar, ela zomba: – Toma lá a tigela.  Se telefona a dizer que vai chegar tarde para o jantar pois perdeu o comboio: — Mas é tão grande! E já o achaste? 

— Olha, deixa-te dessas coisas, vou no primeiro comboio…

— O da meia- noite?

— Qual meia-noite, qual carapuça! Vou no primeiro que apanhar…

— E depois, traze-lo na mão?

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O jogo do gato e do rato

Um rato passeia descaradamente, em plena luz do dia, pela valeta da rua. Ao que isto chegou, por onde andam os gatos de agora, esses que miam, gemem, berram desalmadamente durante as noites? 

Mas eis que, a uns cinquenta metros, parece ter sido detectado pelo gato da vizinha. Como quem não quer a coisa, vai-se aproximando lentamente. O rato imobiliza-se.

Ah, ainda há gatos como os de antigamente, que, mesmo gordos da comida gourmet, amolecidos por fofos sofás, mais propensos a carícias do que a brigas com os compadres, não resistem ao ancestral apelo da caçada!

Ei-lo, foto 1,




que se aproxima da distância do salto sobre a presa, estuda o ângulo, calcula os efeitos do impacto, escolhe o golpe que atordoará a vítima, que depois levará triunfalmente para casa, e com que brincará até que morra das sevícias, abandonando-a depois sobre o tapete da entrada como presente para a dona…

Desencadeia o ataque (foto 2).


O rato está perdido. Mas — ó surpresa!— ai estes gatos de agora, capados, amolecidos pela boa vida, instintos embotados pelas mordomias da boa vida! Não desfere o golpe incapacitante e deixa o rato afastar-se tranquilamente para o refúgio das pedras e das ervas!

Este mundo está perdido!

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Paz e guerra

 O meu artigo no magazine Synapsis. Para receber um exemplar gratuito do magazine, enviar pedido para

synapsis11@gmail.com


PAZ E GUERRA

Conta Fernão Lopes que, quando o Mestre de Avis se apresentou armado no paço da rainha com a intenção de matar o Conde Andeiro, D. Leonor Teles, desconfiada, protestou: bom costume têm os ingleses, que em tempo de paz andam desarmados e usam vestidos e luvas como as donzelas; mas na guerra fazem bom uso das armas, como toda a gente sabe.

O Mestre de Avis retorquiu que isso era porque os ingleses tinham amiúde guerra e poucas vezes paz. Já nós, que temos amiúde paz,  e poucas vezes guerra, se não usássemos armas em tempo de paz, não as poderíamos suportar em tempo de guerra.

O predomínio da paz em Portugal, constatado pelo futuro rei D. João I, marca, entendo eu, a cultura e a maneira de ser portuguesas. Enquanto os povos do centro da Europa viveram e vivem quase permanentemente em guerra — a titulo de exemplo, as guerras púnicas, o genocídio da conquista da Gália por César, as guerras dos 100 anos, dos 30 anos, as campanhas napoleónicas, a primeira e segunda guerras mundiais, a guerra da Jugoslávia — ao longo da nossa história, não apenas nos seus nove séculos como nação independente, mas muito antes, vivemos quase sempre em paz. É certo que q romanização envolveu escaramuças, as invasões bárbaras e depois a árabe e a reconquista cristã fizeram correr sangue em períodos relativamente curtos; fizemos guerra no Norte de África, e depois, com os Descobrimentos, um pouco por todo o Mundo, mas, à escala das outras nações da Europa e dos EUA, em duração e em mortandade, não se me afigura descabido defender que a afirmação do Mestre de Avis, nós temos amiúde paz e poucas vezes guerra, tem sido uma constante ao longo da nossa história e, arrisco-me a dizê-lo, pré-história: não têm sido encontradas por cá as valas comuns pré-históricas que abundam no centro da Europa.

Bem pode Camões pedir a “tuba canora e belicosa”. Com raras excepções, como a conquista de Ceuta, em 1415, as batalhas na Índia, a guerra colonial, somos mais de paz que de guerra, ao contrário dos anglo-saxónicos e seu descendentes, dos germânicos e eslavos. E quando a guerra nos chama, nos obriga a participar, nem sempre o fazemos entusiasticamente, como nesta cantiga de escárnio e maldizer, do século XIII, (CBN 1470) em que o trovador nos diz (adaptação minha):

D. fulano, que eu sei 

Que aprecia a liberdade

Vede o que fez na guerra

(Sabei-o por verdade)   

Logo que viu os ginetes [cavaleiros árabes vindos para a jiade]

(...)

Alçou o seu rabo

E foi à sua vida 

Em Portugal 


Não faltam exemplos na nossa história e na nossa literatura a comprovar que gostamos tanto de guerras como um cão de roer ferro: “contrariados, mas vamos”, no dizer no capitão Vasco Lourenço,  durante a guerra colonial; prontos a “cavar”, como no fado do Cavanço, cantado pelo nosso Corpo Expedicionário Português (CEP) nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (História de Portugal, org. José Mattoso, VI vol., p. 518)

Nesta vida de cavanço,

A cavar, como se vê,

Se os boches dão um avanço,

Cava todo o CEP.


Apenas quando a guerra é nossa, naquilo que é nosso, como na Reconquista Cristã, ou em Aljubarrota, ou quando nos capitaneiam os terríveis Almeida e Albuquerque, ou quando é a liberdade que está ameaçada, como nas guerras liberais, aí nos envolvemos com bravura. De resto, pugnamos pela paz.

Por isso me espantou a sanha belicista que recentemente assolou o país, e, sobretudo, o envolvimento apaixonado de muitas mulheres. Pouco faltou para exigirem, se é o que o não fizeram, a nossa participação directa na guerra que corre entre a Rússia e a Ucrânia. Sem serviço militar obrigatório, não receiam mandar os namorados, os companheiros, os maridos, os filhos para a morte, para a mutilação, esquecendo, na sua fúria guerreira, quais novas padeiras de Aljubarrota, que a guerra é sempre injusta, sanguinária, cruel, má para todos, e que com a globalização pode cá chegar quando menos esperam, na forma de mísseis, ou de radiação, ou até de ataque marítimo.

Se o conflito não evoluir para guerra nuclear, como pode muito bem acontecer, e destruir a civilização, fazendo os sobreviventes recuar à pré-história, ucranianos e russos, filhos da mesma cepa torta, terão de se entender e, como no título do romance de Tolstoi, falar de guerra e paz; nós, passada esta fúria belicista, em boa parte empolada pelos media, continuaremos a falar de paz e guerra – dos outros, nos países dos outros, por causas que lhes são idiossincráticas.

Porque somos isto e aquilo, dirão as gentes mais aguerridas; ou porque sabemos, como magistralmente o clarifica o Padre António Vieira (1668), que


“É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal nenhum que ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro: - o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro.”

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Ida às enguias

Resguardado na adega, após uma semana de chuvadas intensas, constantes, como as havia antigamente, dessas em que nada se podia fazer no campo, o meu pai, grande amigo de patuscadas, convidou o meu tio Zé para irem às enguias: Com este tempo, o guarda-rios passa o dia na taberna do Sulpício.

— Não está tempo para isso, chove a potes… Encharcamo-nos todos, não nos livramos de pneumonia...

O meu pai, olhando para o céu: — Vem aí uma aberta, esta tarde não chove, sentenciou entendido.

E eu, fartíssimo de estar fechado em casa nessas férias de Natal, pedi para ir também, que me cheirava a aventura.

Na minha terra não há cursos de água, pelo que logo após o “jantar” nos metemos ao caminho, capuz feito de saco de serapilheira, botins de  borracha, cestos para apanhar as enguias nas valas da Ribeira do Pereiro. A meio do caminho, na Salgueira, deu em chover torrencialmente. 

— É melhor voltarmos para casa, vai ser toda a tarde assim, disse o meu tio avisadamente, vendo a escuridão do céu.

E o meu pai, talvez por espírito de contradição, seguramente por teimosia: — És é maluco, estamos quase lá, a chuva já passa, chuva civil não molha militar, e tretas do género.

Avançamos, a atascarmo-nos na terra encharcada, a escorregar pelas serventias e caminhos lamacentos. Chegámos às Cobradas. Lá em baixo, por entre as cortinas de água que desciam do céu para a terra, nem se avistava a Ribeira do Pereiro.

O meu tio, mais ajuizado, disse que não prosseguia: Ainda caio e parto uma perna, fico inválido, e tenho de sustentar a família. Não vou.

O meu pai teimava. Afinal, era só descer aquelas ravinas…

— E depois metes-te dentro das valas, com água por baixo e por cima? És é maluco!

Era. E teimoso. E odiava alterar planos. Tal e qual como eu.

Perto, havia um palheiro sem paredes. O meu tio abrigou-se lá, — Daqui não saio enquanto não deixar de chover. O meu pai prosseguiu, eu atrás. Mas as botas de borracha  escorregaram na lama da ravina, caiu e rolou por terra. Voltou para o palheiro.

— Eu não te disse?

Desculpou-se com as botas. E estendendo-se sobre os caules de milho, logo começou a ressonar, sempre sonolento e exausto, de noite padeiro, de dia agricultor. Todas as noites era o mesmo fandango: a minha mãe, logo às onze da noite: Acorda, Afonso! Ele nada. Ela insistia. Abanava-o, chamava-o, mas o meu pai, que dormia três ou quatro horas por dia, nem reagia. Lá para a meia-noite, hora a que era suposto “pegar”, começava a rabujar. E, finalmente, já  atrasado, levantava-se, retirava a pequena maleta de couro onde guardava o dinheiro da venda do pão do prego na parede, punha a trabalhar a motorizada Mondial, e fazia-se à escuridão da noite, deixando-no receosos de que, mal acordado, caísse em barranco nas curvas de Cós e por lá ficasse estendido toda a noite.

Como aconteceu algumas vezes. Culpa do fantasma que lá o esperava para o assombrar, de pau que se metia nos raios, do raio do vinho — a sorte de um homem é escapar, dizia, e a sorte só o desamparou muito mais tarde, numa manhã em que morreu debaixo do tractor.

Fora do palheiro, a chuva incessante, densa, fundia vinhas, cabeços, carreiros, os próprios pinheiros à nossa volta, numa mesma névoa, como se as nuvens tivessem descido à terra, o que, por lá sucede frequentemente. Escurecia rapidamente. Farto de esperar por aberta, certamente desejoso de chegar a casa e se enxugar à lareira, o meu tio acordou o meu pai. Com as dificuldades costumeiras: — O quê? Onde? Deixa-me mas é dormir!

Lá acabou por se levantar, rabugento. Tarde perdida, sem enguias, mas molhados como elas. E como enguias, escorregámos quase às cegas pelos carreiros barrentos, subida após subida até à aldeia e depois a casa, logo a minha mãe, vendo-me encharcado como pinto, ralha: Tira-me já essa roupa e vem aquecer-te ao lume!, e para o meu pai, Vêm bonitos, vêm! Que falta de juízo, e levares o garoto com este temporal, sabendo como ele é enfermiço! Amanhã cai estar de cama outra vez!

Não fiquei doente. Mas, fosse do que fosse, nunca mais o meu pai me levou às enguias.



FOTO: uma meia dúzia de anos depois. O meu pai, orgulhoso do atomizador Fontan que comprara recentemente, o meu tio Zé, o meu primo Fernando, e o meu irmão Afonso montado na nossa motorizada Mondial. Por volta de 1968. Não apareço porque fui o fotógrafo.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Miúdo insuportável

Eu. Refilão, mal-criado, convencido de que era esperto. Se hoje me encontrasse comigo mesmo, com seis anos, digamos, nem à bofetada me suportava. E era demasiado pequeno para a idade, mesmo naquela época em que as crianças eram muito mais pequenas do que hoje — vejam o Aniki Bobó e digam-me se dão doze, treze anos àqueles garotos.

Pois numa manhã apanhámos a camioneta da carreira para Alcobaça e logo que o revisor chegou, 

— Que idade tem o menino.

— Cinco anos, respondeu a minha mãe, a querer escapar ao pagamento de meio bilhete.

— Não tenho nada, tenho seis!

— Cala-te, que não sabes o que dizes!

Na altura, nem bofetadas, sempre bem merecidas, me calavam. Não as levei.

— Não sei o quê? Tenho seis anos, que os fiz no dia 7 de Abril!

A minha mãe, envergonhada a mais não poder ser, pôs-se à minha frente, É só bilhete para mim, o garoto não paga ainda, que só faz os seis anos para o mês que vem.

— Mas ele diz…

— Ora, ele nunca está calado! Quem sabe sou eu, que sou a mãe!

Eu não me calava. E a minha mãe, a ferver, Ah ladrão, cala-te que até te trinco todo!

— Com quê, se anda a arrancar os dentes?

Aliviou a fúria com sonoras gargalhadas. E eu, sentindo-me outra vez sabichão e engraçado, esqueci a teima.

terça-feira, 24 de maio de 2022

O vinho e o porco

Em finais do século passado, seguia eu num comboio regional para Lisboa a tentar ler livro chato, Les Langues Spécialisées, que ia apresentar nessa manhã no seminário de Lexicologia. Em Santarém, entra e senta-se a meu lado jovem negro que, vendo-me a ler em Francês, se me dirige nessa língua. E como ele insistia, eu, polidamente, fechei o livro e fui fazendo conversa.

Tinha vindo do Senegal, era uma espécie de bruxo, e muçulmano. Ia a Lisboa à oração semanal na mesquita. O seu trabalho consistia em exorcizar, desfazer mau olhado, pragas e feitiços, intervir como conselheiro matrimonial reconciliando casais desavindos, isto sem pôr em causa a poligamia. Fazia feitiços — bons, só para proteger o cliente de bruxedo de amante rancorosa —, aconselhava submissão à mulher que queria deixar o marido, orientava as orações e rituais islâmicos.

Eu, a querer voltar para o meu livro, e para ver se o calava, lá acabei por dizer que essa não era religião para mim, apreciador do vinho e da carne de porco.

—Sabes porque é que um muçulmano não bebe vinho?

Eu não sabia.

— Porque com o vinho ralha e bate na mulher, arma zaragata com os vizinhos…

Bom argumento. Embora eu pense, mas não lho disse, o vinho pague muita culpa injustamente, convencido que estou de que não faz as pessoas piores, apenas revela o que são.

— E a carne de porco?, perguntei, a abreviar-lhe o arrazoado.

Então ele explicou-me esse grande mistério: o Profeta estava a morrer à sede no deserto, apareceu um porco que o levou até uma fonte, salvando-lhe a vida. Pelo que decretou: não comas o porco, que é teu irmão!

Esta irmandade não me convencia. Mas passávamos então pelos estaleiros de construção da Expo e ele, apontando os operários, exclamou triunfante: — Vês? É só pretos a trabalhar nas obras!

Pois, pensei então, penso hoje: viver não custa, é preciso é saber viver.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

No tempo da magia

 “Em nome do Anjo Bento…”

E a velha passava uma vez com a faca ferrugenta  sobre o cobrão

“Eu te corto…”

E a faca passava segunda vez

“Bicho peçonhento…”

Última passagem coma faca. A terceira.

“Está feito. Amanhã ou depois já estás bom. Mas, se o rabo se tivesse juntado à cabeça, ias para debaixo da terra.

Assim se tratavam as picadas de aranha. E todas as outras maleitas, cada qual com sua oração. O que faltava em médicos, em remédios, sobrava em rezas, as quais, se ditas com fé suficiente, porque então como hoje basta acreditar para que o milagre aconteça, tudo curavam graças à intervenção dos santos  da especialidade. 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Um médico de outro tempo

Aí pelos meus catorze anos, adoeci. De diferente, desta vez, o estar fora de casa, longe da família, num tempo em que a comunicação se fazia por carta, e o telefone estava reservado para emergências, ligando para o posto da terra e pedindo que fossem chamar alguém — enquanto não chegava, os períodos caíam como a chuva em Dezembro.

Tentei não ligar muito à doença; mas os donos da casa onde estava hospedado insistiram: tens de ir ao médico. Eu recusava. Além do mais, e não o confessava, preocupava-me a despesa, que a magra mesada dificilmente suportava. Adivinhando a causa da minha resistência, ofereceram empréstimo. Com o meu orgulho de fidalgo espanhol pelintra, recusei: não, obrigado, eu tenho. E acabei por ir ao consultório do médico que me recomendaram.

Diagnóstico: papeira. Enquanto passava a receita, o velho médico fazia perguntas de natureza pessoal, adivinhando a minha situação. Sim, era estudante, estava hospedado em Leiria, os meus pais eram emigrantes…

Quando me levantei, Quanto é sr. dr.? 

Não percebi a resposta: nada qualquer coisa.

E eu, desorientado: Ah, pago lá fora, à sua empregada?

Homem, desapareça daqui, que estudantes não têm direito a pagar!


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Uma história mais de guerra*

Um grave acidente de motorizada deixou o — chamemos-lhe Zé, então o mais comum dos nomes próprios— incapacitado, quase inválido. Foi chamado para a Inspecção Militar. Quiseram-no dar por inapto para o serviço militar. Indignou-se.

Enquanto os outros mancebos se queixavam da vista, dos joelhos, das varizes, num esforço vão para se livrarem da guerra, ele, mais receoso das línguas femininas que das balas e das minas dos turras, protestava:  O quê, eu, inapto? Veja aqui! E de pé tocava com as mãos no chão, depois fazia flexões. Eu estou bom, está a ver?

No seu desespero, imaginava as conversas no rio, uma avó a gabar o físico do neto, rapaz tão “profeito” que tinha sido logo apurado para a marinha, uma mãe a retorquir que o seu rapaz iria ser furriel, depois da recruta talvez passasse a oficial, moçoilas a lembrar que também os seus namorados tinham sido apurados, casariam logo que tivessem a tropa feita, e depois todas, a voltarem-se para a sua mãe: Então o teu Zé ficou livre? E murmurando entre beiços: Coitadinho!

Aleijadinho para o resto da vida!

Ah, não! Não ele! E tanto se torceu, tanto suou, que um dos militares já sem paciência disse para os outros: É pá, se o gajo faz tanta questão de ir à tropa, que vá. Prá minha vida…

Para grande gáudio do Zé, foi então apurado, tal e qual como os restantes rapazes da terra, tão “profeito” como eles. E nessa semana as conversas no rio versaram não sobre a sua invalidez, mas sobre  a sua estupidez, todos a quererem ficar livres da tropa sem conseguirem, ele a querer ir, podendo livrar-se.

Chegou a altura da incorporação. Recruta, depois especialidade: atirador. Nas costas dele, riam-se. Os outros eram electricistas, escriturários, cozinheiros, tudo o que os pudesse afastar da mata e das emboscadas, só ele — atirador, a especialidade dos que outra não conseguiam.

Desculpava-se, em tom superior: Lá fora, somos todos atiradores.

Mobilizado. Para a Guiné, onde a guerra recrudescia, fervia, matava e feria — eu recortava as longas listas de mortos que o Diário de Notícias publicava diariamente para afixar no bar da minha escola, o Instituto Comercial.

A cada aerograma do Zé, lido à mãe, analfabeta, na loja que era também posto de correios, a pobre arrancava os cabelos, gritava pelas ruas que era um dor de alma ouvi-la, tão alto e tão sofredoramente como os coitados dos porcos quando os capavam ou matavam:

— Ai o meu Zé, que o não volto a ver!

Ao lado, no adro, os homens que tinham também passado pela guerra, abanavam a cabeça e lastimavam a parvoíce do Zé, o único que vazava o seu terror para os aerogramas, afligindo escusadamente a mãe, que via já morto o seu menino, ou a regressar ainda mais inválido.

Um dia o Zé voltou. Quando tentava contar os seus episódios heróicos na guerra, o que fazia aos pretos mortos ou capturados, como conseguira a picha que trouxe em frasco de álcool, logo os outros lhe lembravam os aerogramas aflitos que quase matavam de susto a mãe.

— Eu? Isso é mentira! Nunca escrevi coisas dessas! Era a velha que queria fazer a suas fitas para que tivessem pena dela!

E de nada adiantava recordar-lhe o testemunho da Maria, que lia as cartas à mãe:

— Isso era para afligir a velha, para me deixar mal visto por não ter querido namorar com ela! Eu, hem? Sempre na dianteira, o alferes até me quis propor para condecoração. Eu é que recusei, não ligo a merdas dessas! 

[Ficção. Como todas as minhas histórias, escusado seria lembrá-lo. Mas faço-o, não se ponha alguém a relacionar estes produtos da minha imaginação com este ou aquele. Ah, até o narrador (“eu”) é apenas o meu alter-ego.]


*Verso de Paxti Andion

terça-feira, 3 de maio de 2022

Da vida e da morte

Pontaria. Em cem biliões de galáxias do universo conhecido, talvez um entre uma infinidade de outros a brotarem como bolhas em pântano, cada uma com pelo menos cem biliões de estrelas, uma infinidade de planetas, saí eu do Nada logo condenado a regressar depressa a esse Nada, como luz que apaga e nada deixa atrás de si, nem sequer simples fotões a viajarem infinitamente no tempo e no espaço...

Comecemos pelo princípio óbvio. Não tivesse eu nascido e nada sofreria. Não me assustaria o medo do vazio que é a morte, essa eternidade sem tempo, sem ontem, hoje, amanhã, sem causa e sem efeito, sem conhecimento nem sofrimento nem prazer. Ou tivesse morrido na infância, como esteve para suceder vezes sem conta, antes de ter consciência de que estava vivo. Hoje, nem uma memória seria, falecidos todos aqueles que me me podiam recordar como pálida tristeza. 

Cheguei a velho. Vi partirem os meus pais, os meus tios, amigos, muitos dos meus conhecidos. Aos poucos, perdi alguma da minha repugnância por doenças, nojo pelos cadáveres. 

Aproxima-se, demore anos ou escassas décadas, a minha hora. Inexorável, inelutável. Vi morrer quem já não queria viver. Creio agora compreender o que sentiam então, essa indiferença que me chocava para com filhos, netos e bisnetos, para com a vida em geral.

A minha mãe. Internado em Santa Maria com aneurisma da aorta roto, retirou a máscara para em grande sofrimento, me dizer: -- Eu não vou morrer! E ano e meio depois, acamada, mãos amarradas para não arrancar os tubos das sondas, abanou a cabeça afirmativamente quando, já sem mais palavras para lhe dizer, lhe perguntei: -- Mãe, quer que me vá embora? 

A minha sogra. Levada ao hospital uma semana antes da morte, onde nada lhe encontraram, pedia que lhe desligassem o pacemaker que a mantinha viva.

Tios que Alzeimer enlouqueceu ao ponto de nem reconhecerem os filhos. Mortos em corpos vivos.

Pelo menos, não sofreram com o avizinhar da morte.

NOTA: não contei as galáxias nem as estrelas, baseio-me em números da ciência, certamente aproximativos, e é também possível que em vez de “biliões “ sejam “milhares de milhões“, sabido que é que o termo inglês “billion” designa um milhar de milhões.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

A minha primeira bica

 Aí pelos meus doze anos, aldeão a estudar na vila, fui convidado por colega mais velho para ir ao então café da moda em Alcobaça, o café Portugal. Comecei por recusar, sem confessar que, para além da escassez de dinheiro, tinha vergonha: nunca tinha entrado em café, e logo nesse tão chique?

Mas a companhia e a curiosidade venceram. Eis-nos sentados, o empregado de bandeja na mão a perguntar o que é que os senhores vão tomar?, e eu sem saber o que pedir que pudesse pagar e não revelasse a minha ignorância rústica do que se consumia em tais estabelecimentos; o meu colega pediu uma bica e eu imitei-o, convencido de que seria algo semelhante a um copo de laranjada, na época a minha bebida de sonho, que apenas bebia em casamentos e baptizados.
Logo que o empregado se afastou, bichanei, preocupado: quanto é que custa? Dez tostões. Fiquei mais descansado, tinha mais do que isso na algibeira, certamente para a sopa do almoço na cantina da escola.
E vieram as bicas. Grande desilusão! Em vez de copo de doce laranjada, um poucochinho de café negro como carvão, que quase não cobria o fundo da chávena! Tão azedo, que nem o pacotinho de açúcar SEMPA logrou adoçar. Devo ter-me queixado, ou a minha cara ao provar a bebida terá revelado ao meu companheiro que o único café que conhecia era a cevada do pequeno-almoço.
Não gostas? É a melhor bica de Alcobaça!
E eu a tentar disfarçar a minha saloíce: é pouco açúcar …
Ele pegou no pacote vazio e repetiu a anedota do labrego que chamou o empregado e protestou pela escassez de açúcar, descodificando a marca SEMPA: Só Esta Merda Para Adoçar?
O empregado retorquiu, lendo ao contrário: Adoça Pouco Mas É Suficiente!
Não foi, portanto, paixão imediata o meu gosto pela “bica”. E não me recordo de ter voltado ao café enquanto estudei em Alcobaça.
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quarta-feira, 13 de abril de 2022

O silêncio é de ouro

Ensinaram-me os anos a desconfiar de quem se chega melífulo, palmadinhas nas costas, sempre sorrisos, abraços, beijinhos — como o velho Malhadinhas, lembram-se? O do Aquilino,  que por entre pias demonstrações de afecto ia enterrando a navalha nas tripas da vítima. 

Ensinou-me a dura experiência que muitas pessoas boazinhas, caridosas ou solidárias, independentemente do seu posicionamento político, são na realidade interesseiras, más, egoístas, não raro velhacas e vingativas. Que se regem menos por padrões morais, que, aliás, distorcem segundo as suas conveniências, mas sobretudo pelo egoísmo, por impulsos e motivações animalescas. E depois, com os artifícios da linguagem, distorcem, explicam e justificam o injustificável.

Pior ainda. O nosso cérebro mamífero adora rituais, hierarquias, submissão, e resiste à aprendizagem. As ideias esgrimidas pelos adversários normalmente entram por um ouvido e saem pelo outro — sem deixar nada dentro.

Duvidam? Experimentem convencer, recorrendo a factos sólidos e argumentação lógica, um crente de que a sua religião é um embuste, um fanático de futebol de que o seu clube é beneficiado pelas arbitragens, ou um adepto das praxes da vergonha que é a existência de tais práticas, sobretudo em meio que se presume intelectual.


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Percevejos

 Apesar de nado e criado em humilde aldeia, em condições de higiene e de viver que hoje seriam insuportáveis, foi apenas em Lisboa, então a capital do império, que vi pela primeira vez percevejos.

Tinha chegado recentemente, e fiquei alojado em lar na Rua do Século, em frente ao jornal do mesmo nome. Era um prédio antigo, e, apesar de oficialmente ser instituição dependente da igreja, lá funcionava com completa autonomia uma espécie de república, dirigida democraticamente pelos jovens moradores, quase todos estudantes trabalhadores.
Dormia profundamente quando o meu amigo Serafim, hoje a viver nos Açores, me acordou. Com dificuldade, que então tinha o sono pesado. Queria que eu fosse ver.
Ver o quê, pá? Deixa-me mas é dormir, que não são horas de ver nada!
Ele insistiu. E sem outra forma de voltar a dormir, acompanhei-o ao quarto, onde o colega, o Rogério, ressonava tranquilamente. E sobre o rosto, o pescoço, os braços destapados, vi, com a claridade que entrava pela janela, um formigueiro de bichos repelentes, vermelhos de sangue roubado, que passeavam inchados, tranquilos como operários em linha de montagem. Percevejos! Um nojo, para mim, rapaz do campo, habituado a quase tudo o que era porcaria.
Com a luz acesa, os percevejos desapareceram quase instantaneamente. Nessa noite, o Serafim dormiu na tábua de passar a ferro do corredor, uma robusta mesa. Eu, perdido o sono, acendia volta-não-volta a luz, coçava-me. Logo de manhã, aspirei cuidadosamente o quarto, fui a uma drogaria comprar “Gesarol”, que apliquei em volta dos pés da cama e em todas as fendas do sobrado. Não voltei a ver percevejos, a praga das famílias reais, até anos depois, na tropa quando fazia a especialidade na EPAM, no Lumiar. Na balbúrdia revolucionária que se vivia, feita de boatos e prevenções revolucionárias, saídas cortadas e alertas de ataques da reacção, calhou-me, apesar de instruento, ser escalado para serviço de guarda, isto para os “operacionais” – cozinheiros, padeiros, que mal sabiam manusear a espingarda G3 --, irem proteger a RTP da reacção.
Após dois turnos de sentinela, que ninguém apareceu para me substituir, fui rendido noite alta, e dirigi-me, como era minha obrigação, à casa da guarda. Sobre o rosto de camarada adormecido, passeavam percevejos, gordos e felizes…