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domingo, 27 de julho de 2014

Conservador me confesso

A propósito do post anterior, o meu amigo Reinaldo chama-me conservador. E põe-me a reflectir. Porque desde a infância procuro saber quem sou, o que sou. Mas conservador?
Bom, como classificar homem casado com uma só mulher, há mais de quarenta anos, nestes tempos de casa e descasa? Que respeita a palavra dada, os compromissos assumidos? Que paga prontamente as dívidas? Que prefere, sem a menor dúvida, a comida tradicional portuguesa à de autor, gourmet e quejandos? Que usa lenços de pano, sempre calça peúgas debaixo das sapatilhas, a que não chama ténis, cumprimenta com aperto de mão clássico os amigos e preserva-os ao longo dos anos? Que dizer de um homem que, nos tempos que correm, põe, como sempre pôs, os valores acima dos interesses, dos apetites? Que aprecia rotinas, que pratica a mesma arte marcial há mais de três décadas?
Visto assim, nenhuma dúvida de que sou um conservador.
Por outro lado, não sou avesso à inovação. Escrevo num iPad e não com caneta Parker de aparo de ouro. Antes escrevia no computador, desde que adquiri o primeiro, no início dos anos noventa -- e mais para trás escrevia à máquina. Aderi à fotografia digital nos seus primórdios, farto de câmara escura. Prefiro ler ebooks a papel -- mas a minha vista e os meus hábitos de leitura podem ajudar a explicar esta preferência pouco conservadora. Fascinam-me as engenhocas, as descobertas alheias, as novidades do progresso tecnológico e, sobretudo, científico. 
Mas o meu amigo quer insinuar que sou politicamente conservador. Ora aí tenho de discordar. Desde que me afastei da praxis política, pouco depois do 25 de Abril, não me filiei, não me tornei simpatizante de nenhum partido, o que me permite manter a distância, a visão fria sobre as respectivas ideologias e ideias (um deserto) e as políticas propostas - infelizmente, digo-o com pena sincera - é tudo a mesma merda. Todos, com as suas políticas, ou com a ausência de políticas alternativas, nos mergulharam na fossa fedorenta de onde não vejo como conseguiremos sair. Já votei em todos os partidos, inclusive, confesso-o com alguma vergonha, no partido do Reinaldo, como aconteceu recentemente nas eleições autárquicas, precisamente porque alguns dos candidatos eram amigos cujo mérito reconheço e admiro...

Tudo bem pesado, parece-me evidente que o fiel da balança se inclina nitidamente para o lado conservador. Mas, assim gosto de me ver, assim gostaria de ser, conservador esclarecido, de olhos abertos. Conservador, mas não de direita, nem atacado pela cegueira conservadora do PC ou do Bloco, nem afectado pelas fogaças mediáticas de um PS acéfalo. Sem preconceitos, livre para votar no partido que, em cada eleição, me apresentar o projecto mais credível, ou menos mau, ou candidatos que respeite. Ou em nenhum, como fiz nas últimas eleições presidenciais.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

O Caixinha e o caixão

Cheguei um pouco atrasado à primeira aula da manhã, já os corredores do Instituto Comercial estavam vazios. O professor de Elementos de Direito Civil, Caixinha de seu apelido, pessoa de ordinário afável, camarada, sempre a insinuar que também ele estava contra o regime, parecia esperar apenas por mim para começar raspanete exaltado: ele a tratar-nos bem, como pessoas, nós a espetar-lhe a faca nas costas, mas daqui para a frente outro galo cantará, acabaram-se as confianças, cada macaco seu galho!
Consciência tranquila, nada sabendo, nada compreendendo, olhava-o fixamente, a tentar perceber o que o teria zangado daquela forma -- pelos vistos comigo, e os meus colegas da dianteira pareciam confirmar as suas suspeitas, voltando as cabeças para trás, para mim, como se eu fosse o responsável pela fúria sonorosa que se tinha apossado do homem.

Numa qualquer interrupção, talvez a receber o livro de ponto, bichanei a colega do lado: porque é que o Caixinha estava tão bravo?
Passou-me à socapa panfleto acabadinho de sair, emanado da clandestina Pró-Associação de Estudantes, composta predominantemente por alunos expulsos nas greves dos anos anteriores, os quais agora integravam também o Estar na Luta, de Económicas -- onde o pasquim fora elaborado.
Da primeira à última página, professores e funcionários eram ofendidos, ridicularizados. E encontrei, pelo meio, desenho tosco, feito a estilete no estêncil, de uma faca e um caixão, a ilustrar texto com título sugestivo:
CADA CAIXINHA FABRICA O SEU CAIXÃO
Compreendi então. As evidências estavam contra mim, desde o meu aspecto -- cabelo comprido, barba, camisa de camuflado comprada na Feira da Ladra --, ao comportamento e às companhias: chegara atrasado, como para evitar que me relacionassem com o panfleto, e viam-me amiúde com revolucionários; não sabiam, não podiam saber, que eles, no entanto, não confiavam em mim, que era então anarquista, e por isso mesmo me não tinham posto a par dos conteúdos do panfleto, nem mo tinham dado para distribuir.
No intervalo, avisto o Luís M., "estudante" que apenas entrava no Instituto para agitação: -- A malta, pá, tem que se unir, pá, contra o director, pá...
-- Então, já leste? Tá bom, não tá?
Protesto. Mal escrito, conteúdos injustos e reles. Então o do Caixinha...
-- Um bom filha da puta, pá! Os professores são todos fascistas, pá, ou social-fascistas. Uns bufos! E tu, ou estás com os estudantes e a luta, ou estás com o inimigo. O do Caixinha está muito bom, os estudantes gostam, pá, já muitos mo disseram, pá, há que desmascarar esses gajos que se fingem amigos dos estudantes, pá... Fui eu que o escrevi, podes ir bufar-lhe...
Obviamente não fui. E no ano seguinte, cabelo curto, barba rapada, vestuário normal, eu era já um "estudante progressista", de dia a manifestar-me nas ruas de Lisboa berrando vivas à ditadura do proletariado, de noite a pintar nas paredes Abaixo a guerra colonial, a distribuir pelas caixas de correio tarjetas com votos de longa vida ao camarada Mao...

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Menos Dois

1971 ou 1972, Instituto Comercial de Lisboa. Os estudantes em protesto apinham-se nas escadas em caracol exigindo a presença do director. Como não aparece, começam a bater com os pés nos degraus de madeira. Eis que se abre porta no primeiro andar, surge apavorado professor de Matemática, o Menos Dois:
-- Senhores alunos! senhores alunos, grita, tentando fazer-se ouvir sobre o clamor geral, estou aqui não como professor, mas como engenheiro! Para vos dizer que se continuam a bater com os pés as escadas caem!

FOTO: em frente, o edifício onde funcionou o Instituto Comercial de Lisboa.