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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mundo de solidão


No lar, atrai-me a atenção velhota sem visitas. Noventa e três anos, dizem-me.

Mete-se com ela alguém que a conhece: 
-- Tia Francisca, quer boleia para Árgea?
-- Para quê? Já lá não tenho ninguém...
Espanta-se o conhecido. Pergunta por este, por aquela.
--- Já me morreu tudo...

Vendeta eleitoral

Se querem compreender algo do que se passou ontem, nas eleições, e as reais motivações dos eleitores, esqueçam os comentadores e façam como eu: vão à cabeleireira.
Na conversa, enquanto o pouco cabelo que me resta tomba na toalha, manifesto espanto pela derrota de candidata que aprendi a respeitar nos anos em que trabalhámos juntos e tinha tudo, supunha eu, para ganhar folgadamente a Câmara. Prova provada que de política, como de futebol, não entendo nada.
A cabeleireira surpreende-se: — Mas aqui, no Entroncamento, ela nunca podia ganhar!
— Por ser mulher? — pergunto ingenuamente, cuidando que machismo provinciano tivesse prejudicado a minha ex-colega. Ou eventuais ódios antigos, algo contra o pai, a família...
— Não, porque aqui os ferroviários têm muito peso e ela tirou-lhes o passe e às famílias!
— Mas ela não fez nada disso!
— Ora, é deputada e foram os deputados que tiraram o passe aos ferroviários...

Não é, portanto, com sessões de esclarecimento, propaganda partidária, militância, que se motivam os eleitores. Basta o "diz-se que" para arruinar uma candidatura. E a sanha vingadora: Ah a minha filha ficou sem o passe, a minha mulher tem de comprar bilhete para viajar de comboio? Pois alguém vai pagar por isso. Cá se fazem, cá se pagam!

E não, também eu não votei na Isilda, antes convencido de que ela ganharia sem problemas dei o meu voto a candidato que se tem distinguido na oposição. Também não ganhou, mas a tal já estará habituado... Como eu, que não acerto uma!

domingo, 29 de setembro de 2013

A revolta em Alpedriz

A agregação de freguesias foi feita à revelia das populações, da sua história e cultura, com completo desprezo pelas razões que levaram à sua constituição — antes de mais, a igreja onde o povo se reunia, se baptizava, casava, enterrava os seus defuntos, e os cemitérios onde, a partir de meados do séc. XIX, repousam, mais do que as ossadas, os elos que ligam os vivos ao passado, à família, à terra.
Alpedriz, com história que remonta, pelo menos, a D. Afonso Henriques, que tomou a vila aos mouros e lhe concedeu foral, viu a sua importância crescer ao longo dos séculos. Apesar de distante quatro ou cinco quilómetros de Cós, não manteve ligações históricas, nem culturais, nem, suponho, sociais  com Cós, outro importante centro histórico, que se desenvolveu em volta do seu convento de monjas de Cister. E Entre Cós e Alpedriz fica a minha terra, Montes, que muito progrediu desde que passou a ser freguesia — só então teve esgotos e saneamento, ruas alcatroadas, cemitério, centro de dia para a terceira idade, etc., e agora se vê remetida com a agregação para a apagada e vil tristeza de outrora.
Indigna-se o povo, a quem já quase tudo foi sido tirado e vê agora periclar o pouco que lhe resta, mas que afinal estrutura uma nação: o seu apego ao passado e o sentido de pertença a uma comunidade. Protesta o povo de Alpedriz contra a ignorância e a falta de sentido patriótico que está na origem da agregação de freguesias -- certamente escusadas nas cidades, mas fundamentais nas aldeias...


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Pingo de mel

Pingó mel, diz-se. Na minha terra, figos de Lisboa. De figueira que plantei há dois anos.

Primícias outonais

Dos meus jovens castanheiros.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Pormenores e eucaliptos

No conto O Largo, de Manuel da Fonseca, um bêbedo vê destruída a história que conta empolgado -- por um pormenor. Dizia ele que tinha derrubado com soco um carteirista no (Largo do) Rossio, em Lisboa, e o homem bateu com a cabeça num eucalipto...
Com o progresso, tantos são os eucaliptos que por aí brotam que já houve quem falasse de "Portucaliptal". Pior, são apresentados tão assertivamente, mas defendidos com tal versatilidade, que tornam impossível qualquer debate sério. Por exemplo, numa discussão sobre poesia:
-- Como disse Einstein, tudo é relativo...
-- Mas Einstein não disse nada disso!
Vendo periclitar a imagem que laboriosamente constrói de si mesmo, o nosso interlocutor pode reagir de várias formas:
(1) -- Se Einstein não disse, podia ter dito!
(2) -- E que diferença faz, se estamos a discutir a interpretação do poema?
(3) -- Lá estás tu com a mania de que sabes tudo, nem sei porque é que ainda te dou confiança!
(4) Põe sorriso superior, ignora-nos, talvez dirigindo-se a adulador que oportunamente surgiu.
Duma coisa não tenhamos dúvidas: salva sempre a face, como se tal fosse mais importante do que a correcção da afirmação; e jamais lhe faltarão apoios, que o rigor incomoda muito no nosso Portucaliptal. 
Suponho que esta atitude -- generalizada, transversal, endémica --, se deve ao predomínio secular das Letras sobre as Ciências, com a consequente sobrevalorização da argumentação e dos seus artifícios  em detrimento dos factos.  
Mas, como praga, os danados dos pormenores insistem em saltar à vista, como no conto de Manuel da Fonseca, expondo a olhares atentos o rabo de palha -- que o sábio prontamente tapará ao ser alertado, não com humilde agradecimento pela correcção, mas com palavreado e tretas.

domingo, 22 de setembro de 2013

Sol de Inverno

Nada tem a ver com a telenovela da SIC. É o título do Capítulo 9 do meu romance Entre Cós e Alpedriz (2007), a que pertence este excerto:

Nuvens baixas correm pelo céu, das Sesmarias para a Santa Rita e, muito mais acima, outras vogam lentamente em sentido contrário, vagas, fluidas, incertas, indiferentes às vinhas perdidas que sobrevoam. Já o Sol de Inverno se esconde por detrás do Alto Casal, o dia arrefece, a luz intensa desaparece, fundindo-se com as sombras do crepúsculo. Ah, se estivesse agora nas Tojeiras, vê-lo-ia mais uma vez desaparecer ao fundo entre os pinhais que ocultam da vista o mar, onde se afundará tingindo-o de rubro.
Mar, mar, tão próximo e tão distante, mar gelado no Verão, afagando-lhe os pés descalços, mar cinzento no Outono, cheiroso do mexilhão com que enchia saca de serapilheira para patuscada na adega, mar violento no Inverno, quebrando-se contra molhes e penhascos, mar azul na Primavera, mar das sardinhas e dos chicharros, onde lavram pescadores em ceroulas de flanela, mar que chega aos Montes trazido pela maresia quando o vento sopra de feição ou nas canastras das peixeiras, as pexinas, correndo para evitar que outra chegue primeiro a casa da freguesa, sempre apregoando o pescado com a musicalidade do falar da Nazaré...
Mar — vê-o nitidamente, tal como o avistou do Sítio quando levou o filho Francisco pela primeira vez à praia, teria o moço então uns seis anos. Ah, como lamentava agora o rigor com que tratara a criança, surra em cima de surra, ralhos sobre ralhos, proibições de fazer isto, de andar com este ou com aquele, e nem a desculpa de ter procedido como todos os outros pais, como o seu próprio pai procedera para consigo, lhe servia já de atenuante. Fora brutidade, fora ignorância, fora maldade, e ainda bem que já havia quem começasse a quebrar o costume que se arrastava há tantas gerações que parecia perder-se na origem dos tempos; vê crianças semi-nuas, vestindo apenas uma camisola interior que já não lhes tapa a barriga inchada pela subnutrição, descalças sobre geadas de Fevereiro, arrancando lâminas de gelo da superfície de poças de água, o ranho escorrendo pelas faces — para “enrijar”, dirão rindo cinicamente as bestas dos pais, tentando assim justificar a crueza com que tratam a prole... Logo, logo, o remorso cede lugar à imagem da água do mar espelhada nos olhos do moço enquanto caminhavam ambos pela beira-mar, os pés finalmente livres das botas que todo o ano os aprisionavam, o perfume da maresia enchendo-lhes o peito, o céu azul cortado pelo voo branco das gaivotas, as sardinhas prateadas palpitando nas redes, a alegria resplandecendo no rosto dos pescadores,
como camponeses após abundante vindima — e lamentava novamente todos os momentos desperdiçados por não ter reparado que os dias desfilavam velozmente como os cavalinhos do carrossel na Feira de São Bernardo, sempre correndo, ora subindo, ora descendo, — Mais uma volta! 'Tá a andar! Entravam crianças, saíam adultos, aqueles que de fora olhavam viam apenas rostos e corpos que rodavam, bem agarrados ao cavalo de pau ou rodopiando em banco rotativo, e na vertigem que as voltas causavam, não sabiam já se os velhos que de lá saíam, — O quê, já acabou? Passou tão depressa!, não seriam as crianças que tinham visto pouco antes a entrar...
(A quem possa interessar: o romance está à venda na Leya Online. Em papel, pode ser encontrado, por exemplo, no Parque dos Monges).

Leitura crítica

Proponho como actividade de domingo uma leitura crítica da descrição do deserto que se segue. Depois, podem confrontar os vossos pareceres com os de Rodrigues Lapa, também transcritos.
"Noite encantadora! O luar banha com os seus raios argentinos o areal desértico e imenso. Tudo brilha e refulge sob a claridade branda e suave da Lua. As estrelas, como milhões de pirilampos, estão disseminadas pela quietude misteriosa do firmamento. E no silêncio sepulcral do deserto, apenas cortado pela brisa rumorejante e dolente dos oásis, tudo parece contemplar o céu, meditando no enigma do infinito. Algumas poucas árvores frondosas erguem as copas altaneiras, como que orando a Deus pela solidão atroz que as envolve. Naquela noite alguém lhes faz companhia. É uma caravana. As tendas espalham-se pelo oásis, sob a abóbada das ramagens. Tudo parece dormir. Somente a Lua é cada vez mais brilhante e mais bela, fazendo da areia do deserto um manto branco de virgem a perder de vista nos horizontes longínquos".
"Tudo neste texto soa a falso — a falsidade das coisas que não são vistas nem sentidas directamente por nós.  Os clichés são em número infinito, como as areias daquele deserto postiço: noite encantadora — o luar banha — raios argentinos — areal imenso — claridade branda da Lua — silêncio sepulcral — brisa rumorejante — contemplar o céu — meditar no enigma do infinito — árvores frondosas a erguer as copas — solidão atroz que as envolve — manto branco de virgem — horizontes longínquos.
Uma série de locuções estafadas, de imagens corriqueiras, que, por isso mesmo, nos não produzem a menor impressão artística. A gente sorri-se do inexperiente autor, que procurou fazer estilo, seguindo precisamente o caminho contrário: não nos pôde dar os resultados da sua própria experiência, por não tê-la, e reproduziu apenas o que anda na boca ou nos bicos da pena de toda a gente. O efeito foi desastroso."
M. Rodrigues Lapa. (1984). Estilística da Língua Portuguesa, 11ª ed., Coimbra Editora, Lda., pp. 90-91

sábado, 21 de setembro de 2013

Inveja

Como na cantiga alentejana, não invejo quem tem carros, parelhas e montes  —  mas quem escreve bem.
Como o Padre António Vieira:
A primeira maravilha foram as pirâmides do Egipto, a segunda os muros de Babilónia, a terceira a torre de Faros, a quarta o colosso de Rodes, a quinta o mausoléu de Cária, a sexta o Templo de Diana Efesina, a sétima o simulacro de Júpiter Olímpico. E deixando o anfiteatro, de que só se vêem as ruínas, as pirâmides caíram, os muros arrasaram-se, o colosso desfez-se, o mausoléu sepultou-se, a torre sumiu-se, o farol apagou-se, o templo ardeu, e o simulacro como simulacro, desvaneceu-se em si mesmo. 
Veja-se como o autor evita os adjectivos e explora magistralmente a expressividade dos nomes e verbos, a relação entre ambos — e como as repetições, habitualmente tão maltratadas, surgem inevitáveis.  Que inveja! Que lição! 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Verde que te quero verde

Falhei nas previsões meteorológicas, talvez por ter projectado na Lua os meus desejos de chuva. E com este calor, quase sem água para rega, o verde seria miragem -- não fosse a estufa.
Para minha surpresa, o calor da estufa no Verão não cozeu as culturas, antes as desenvolveu opulentas; com temperaturas quase sempre acima dos 45 graus, tive abundante produção de pepinos, feijão verde, alfaces, rabanetes, cenouras... E fora da estufa, quase nada.
Ei-la, com canteiros de couve à espera de chuva e terra preparada para onde transplantar, mais feijão verde, nabos, nabiças, rabanetes, pimentos, malaguetas, cenouras, alfaces... 
Um oásis.


domingo, 15 de setembro de 2013

Esperança

De que o tempo mude, apesar das previsões meteorológicas o negarem.
Estas nuvens que quase ocultam a Lua podem trazer aí a mudança por que quase todos suspiramos.
É preciso que chova para nos libertar deste calor maldito, evitar que crianças e professores sejam cozidos nas salas de aula.
Para me permitir lavrar, fresar, preparar as terras para as plantações de Outono, já muito atrasadas. Para que as árvores e cepas me não morram à sede.
Para lavar as uvas do pó do Verão e dos resíduos dos pesticidas. 
Para limpar o ar. 
Para tanta coisa.

sábado, 14 de setembro de 2013

Quase como Diógenes

Éramos novos, acreditávamos, procurávamos.  Não apenas um homem -- então como hoje, uma raridade -- mas a humanidade. E a verdade, a beleza, a justiça. De dia, como Diógenes, mas também na negrura da noite, impenetrável, misteriosa, sedutora -- irresistível.
Irrelevante o que achámos. Como a certeza de que as verdades que nos moviam residiam no ferrão peçonhento de um lacrau. Que a justiça, mais retórica, menos retórica, continua a ser a lei do mais forte. Que a própria beleza é passageira...
Mas descobrimos também, como os jovens das gerações que nos precederam, que é a procura que anima a vida, lhe dá sentido, e nos diferencia dos restantes animais, não humanos e humanos. Que a beleza está em ajeitar o caminho que inevitavelmente teremos de percorrer. 

FOTO: o Henrique, anos 70. Acampados na Serra da Estrela, na neve, com frio que nos trespassava. Éramos assim.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Ivan Sag

Chega-me por mail a notícia da morte de Ivan Sag:
Dear Colleagues,
It is with great sadness that I pass on to you the news that Ivan died yesterday afternoon. He had been very ill for quite some time.
Some months ago there was a workshop in Stanford to celebrate this life in linguistics. At the time he was already very ill, but in spite of this he played a full part in the proceedings, and his intellect and enthusiasm were undiminished.  
He was a great linguist, and a good friend. He will be badly missed.
This is how I will remember him:
http://hpsg.fu-berlin.de/~stefan/Bilder/2009/07/08/ivan-sag/

Best wishes
Doug Arnold
Chair, HPSG Standing Committee

Não o conhecia pessoalmente. Mas foi muito importante para mim, aquando da realização da minha dissertação de mestrado: Ivan Sag foi um dos pais do modelo linguístico em que, por indicação da minha orientadora, enquadrei teoricamente o meu trabalho -- a Head-driven Phrase Structure Grammar (HPSG) .
Recordo os esforços penosos que fiz para tentar entender esse quadro teórico que rompia com o cânone (representado pelos sucessivos modelos generativos apresentados por Noam Chomsky, de quem Sag foi doutorando), demais a mais com toda a bibliografia em Inglês, língua que lia mal. Mas depressa fiquei fascinado pela clareza expositiva e pelo rigor científico de obras como Head-driven Phrase Structure Grammar (Pollard & Sag, 1994), English Relative Clauses (Sag, 1997), Syntactic Theory: a Formal Introduction (Sag & Wasow, draft 1999). E foi profundamente entusiasmado que tentei descrever no quadro teórico da HPSG dependências de longa distância como as que ocorrem nas orações relativas do Português.
Por isso me associo com sentido pesar à homenagem que os seus amigos e colegas lhe prestam.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Papa e a Síria

Escrevi "Lá vamos nós outra vez!" indignado com a propaganda hipócrita dos media, a prepararem o terreno para ataques americanos à Síria, com argumentos tão gastos que certamente só os utilizam convencidos da nossa fraca memória. Ou indiferença. Ou burrice.
Que fique claro: não duvido da utilização de armas químicas na Síria. Duvido da autoria, o que é bem diferente. E no horror da guerra, o que mais me preocupa não é saber se os mortos foram queimados, estraçalhados por bombas, executados à falsa fé ou gaseados.  Preocupa-me o porquê, o por quem. Em nome de que interesses. 
Intrigam-me as razões que motivam a aliança tão estranha entre americanos e Al Quaeda. Será o preço  a pagar por negociações que têm decorrido no Afeganistão, para que os americanos possam de lá sair, senão airosamente, pelo menos de fininho, rabinho entre as pernas? Que, estou sempre a dizê-lo, é fácil começar as guerras. Agora terminá-las!
Alegrou-me ver que por todo o lado havia gente que pensava como eu, e exprimia racionalmente, com argumentação sólida, o que eu digo de forma emotiva. Tanta gente que desta vez até os ingleses recusaram participar na aventura americana, de consequências imprevisíveis. Mas negativas. Basta ver  no que deram as recentes intervenções no Iraque, no Afeganistão, na Líbia.
Uma dessas vozes, que espero seja escutada, foi a do Papa:
O Papa repetiu neste domingo o seu apelo a uma “solução justa” para a Síria e, um dia depois de ter juntado cem mil pessoas na Praça de São Pedro numa vigília pela paz, lançou novo repto aos que defendem uma intervenção militar contra o regime de Damasco ao afirmar que muitas guerras têm como único propósito alimentar o comércio de armas.
Não estou, portanto, só nesta minha campanha contra a guerra...

sábado, 7 de setembro de 2013

Fogo

Perto de mim. Começou pela meia-noite. Não é, portanto, nem acidental nem resultado de desleixo. Entretanto, outras sirenes das redondezas fazem-se ouvir. Suponho que os bandidos estão a atear outros incêndios.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Ainda o piropo

Com o piropo na ordem do dia, certamente por falta de matéria mais importante, e não querendo deixar de, também eu, me pronunciar sobre assunto tão relevante, fui buscar o excerto que se segue a Do lacrau e da sua picada:

"Estranha o vazio e a tristeza do Largo do Santo António, sem os seus reformados, uns jogando às damas, outros espreitando gulosos a passagem das raparigas a caminho da escola ou das lojas, esquecidos de que o seu tempo já lá vai, embora se sintam obrigados a fazer o seu papel, uma vez que os novos, como o Luís, não dão mostras de lhes suceder dignamente.
— Ah, rapazes, havia eu de ser outra vez novo, ter agora vinte anos, e saber o que sei hoje!
Ignora-se que sabedoria seja essa, não se enxerga nada que preste, apenas uns piropos grosseiros a moças que bem podiam ser netas; elas seguem na mesma o seu caminho, só que furiosas, vociferando entre dentes, — Cota de merda, velhadas do... ,
Não admirará se qualquer dia uma enfiar a mão na cara do galã fora de prazo, os tempos mudaram e eles não se deram conta disso, enfim, não os critiquemos mais, cada um sabe de si e Deus Nosso Senhor de nós todos, o que é certo é que o largo não parece o mesmo sem eles."