Número total de visualizações de páginas

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O 1 de Maio de 1973

Meses de agitação intensa, as noites nas ruas a fazer pinturas, os dias em manifestações, tinham mandado para a prisão muitos de nós, alguns dos melhores de nós. Dois anos desta vida sem ser preso era prova da minha habilidade, do cuidado com que aplicava todas as precauções revolucionárias, evitando ser seguido, muitas vezes dormindo fora de casa, que era o meu quarto de estudante, na Rua Poço dos Negros. Também me faltava a coragem de me medir com a polícia e as suas torturas, de me querer pôr à prova para saber se, como verdadeiro revolucionário, enfrentaria sem ceder as torturas em Caxias, sobretudo a que mais receava: a do sono.

Por isso, ao contrário de outros que pareciam tudo fazer para serem detidos e na prisão ganharem o estatuto de heróis — ou descobrirem que ainda não estavam devidamente preparados politicamente como filhos do Povo para resistir a duas semanas de tortura do sono — eu evitava ser preso, arriscava o necessário, mas não mais, dissimulava-me constantemente, encorajado pelo meu controleiro, um clandestino.

Mas no primeiro de Maio de 1973 tinha o pressentimento, estava firmemente convencido de que seria finalmente preso — ou morto. Tirei do quarto todo o material comprometedor, livros, panfletos, equipamento artesanal com que os reproduzia e pu-lo a salvo em casa de amiga. Logo de manhã, como cristão que se prepara para a morte, assisti à nossa missa comunista, no cemitério junto à campa de Ribeiro dos Santos, o primeiro mártir da nossa causa.

Saldanha Sanches fez belíssimo discurso, comovente até às lágrimas: também nós devíamos estar prontos a dar naquela tarde as nossas vidas pela revolução.

Como condenado que vê os seus dias chegarem ao termo e se desforra na última refeição, gastei dinheiro que deveria durar mais uma semana em almoço em restaurante melhorzinho, bebi até -- luxo a que de ordinário me não podia dar — uma cerveja, Carlsberg. 

E à hora da manif, segui para o Rossio, pronto para o que desse e viesse. Habituado a manifestações com escassas dezenas de estudantes, sempre os mesmos, exceptuando aqueles que iam sendo presos ou desertavam da causa, assombrou-me ver a praça apinhada de gente, povo!, esse povo em nome de quem há tanto falava, que procurava agitar, trazer à rua, amotinar contra o regime. Do alto de um edifício, por cima do Diário de Notícias, a Pide (quem mais poderia ser?) filmava-nos ostensivamente, ameaçadoramente, e os populares faziam-lhe manguitos destemidos. Senti ali começar a revolução almejada.

Subitamente, a polícia atacou com canhões de água, empurrando-nos dali para fora, rua do Ouro abaixo. Avistei o meu controleiro, ali, à luz do dia: Vamos voltar para o Rossio e tomar a praça! 

Por todo o lado, cacetadas, espancamentos da polícia de choque, o capitão Maltês a comandar. Todos os acessos estavam barrados. Entrei em autocarro apinhado, que havia de entrar no Rossio, fiz comício no interior para trabalhadores assustados comigo, com a polícia que, fora, em todos, em tudo, batia. Vejam, quem trabalha leva porrada! Viva o primeiro de Maio! O primeiro de Maio é vermelho!, mas o condutor recusou abrir as portas dentro da praça, certamente para a polícia não entrar.

Batemo-nos noite fora. Escapei. Pouco depois, denunciado, abandonei os estudos e a capital, fui viver para a Marinha Grande, a trabalhar em Leiria nas obras primeiro, como operário de plásticos depois. Participei na organização do primeiro de Maio vermelho de 1974, na Praça Stefens, lição para os “revisas”, que a tal há muito se não atreviam. 

Deu-se o 25 de Abril, quando cheguei naquela manhã, pronto para a luta, os soldados que nos deveriam reprimir tinham cravos vermelhos nos tapa-chamas das G3, o ambiente era de festa, como se a guerra colonial tivesse acabado, os amanhãs já cantassem...

E nunca mais comemorei nas ruas o primeiro de Maio. 

terça-feira, 2 de maio de 2023

Um amigo perdido no tempo e no espaço

 O Vasco, via-se à distância, só podia ser um revolucionário: enorme, o mesmo sobretudo escuro de Verão ou de Inverno, boina basca sobre a desgrenhada cabeleira negra encaracolada e sebenta, barba imponente à Fidel de Castro, a tiracolo bornal militar comprado na Feira da Ladra, azedo no falar, quase grunhidos em algarvio cerrado. Inevitavelmente, pelo menos aos olhos dos estudantes, sobre ele recaíam as suspeitas de autoria e distribuição dos panfletos, da colagem dos “selos”, etiquetas autocolantes com palavras de ordem anticoloniais, das pinturas que volta-não-volta decoravam a fachada do Instituto; e ele, agradado com essa imagem, nada fazia para se livrar de suspeitas, antes pelo contrário, sempre que podia distribuía a propaganda associativa, por convicção, talvez também por desejo de brilhar e, eventualmente, vir a ser recrutado.

Tão exposto, parecia um perigo para as organizações clandestinas: um liberal, um pequeno-burguês, demasiado fácil de vigiar pela PIDE, útil, mas sem lugar nos comités clandestinos que se moviam nas sombras. Mas, se eu nada lhe confidenciava que sugerisse o meu envolvimento na luta clandestina, nem lhe dava “tarefas”, acabámos por partilhar um quarto na rua de Arroios durante dois meses.

Longe do Instituto, com as cantinas fechadas uma após outra pela polícia, as minhas despesas aumentaram tanto que nem a comer nas mais baratas das tascas para trabalhadores cabo-verdianos o dinheiro me chegava até ao final do mês — eu era boa boca, comia tudo, mais interessado na quantidade que na qualidade, mas, mesmo assim, a fome, crónica, endémica, atormentava-me. Como os cearenses de Josué de Castro, que tinha lido recentemente, também eu tinha a cabeça cheia de comidas imaginárias… o Vasco, mais abonado, sugeria-me que “tirasse” comida nos supermercados, como ele e outros revolucionários faziam frequentemente; mas não nasci para ladrão, e roubar, mesmo disfarçado eufemisticamente de “expropriação da burguesia” era, para mim, mais intolerável que a fome que me roía nesse final de Maio. 

Em desespero, escrevi à minha avó, perguntando se me podia enviar um coelho OU uma galinha. Dois dias depois, para minha surpresa, chegou à camionagem a encomenda, com um coelho E uma galinha! Vim a saber que um primo, ao ler a carta, que a minha avó já não tinha olhos para tal, trocou o “ou” por “e”. A namorada do Vasco cozinhou os bichos e, para se não estragarem, empanturrámo-nos com eles durante uns dias, tirando eu a barriga de misérias até à chegada da próxima carta dos meus pais, emigrantes na Holanda, com a mesada de Junho.

Findo o ano lectivo, separámo-nos. Embora amigos, não me convinha a sua curiosidade: onde foste, de onde vens, vieste tarde na noite passada, onde vais…

Só aí por 76 ou 77, nos voltámos a encontrar. Veio falar comigo a tentar demover-me: eu tinha apresentado pedido de demissão, certo da inevitabilidade de expulsão por “seguir a linha de direita”, como me acusava a miudagem ultra-radical entrada no pós-25 de Abril. 

O seu aspecto era o mesmo, mas o ar tenebroso era agora adequado: guarda-costas do Arnaldo Matos. E confidenciou-me: também ele só não tinha ainda mandado tudo isto à merda por causa do “homem dos bigodes“, a quem o ligava profunda lealdade e admiração.