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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Do profissionalismo

(A noite estava escura e tempestuosa)
Chovia torrencialmente, o vento soprava forte, o frio era cortante naquela noite de Janeiro. Não havia então casas próximas da minha, situada no limite da vila, em zona tida por insegura, com tiroteios frequentes nas imediações.
Aí pela meia noite, tocam-me à campainha. Quem será, com um temporal destes? Outra vez algum bêbedo desnorteado?
Assomo à janela. Um táxi, de onde saem para a chuva duas mulheres desconhecidas. Engano, seguramente.
Se era ali que morava — eu! Sim.
Se podiam entrar e falar comigo — com o colega, somos do Júri Nacional de Exames...
Já eu corria a abrir a porta, que entrassem, que saíssem do temporal, Mas o que se passa?
Entram, encharcadas, a tremer com frio. E em frente à lareira, enquanto aqueciam, em vez de explicações, perguntas: Se já tinha começado a corrigir os exames que me tinham sido entregues nessa manhã, em Lisboa — a cem quilómetros de distância.
Surpreendido, disse que não. Só tencionava começar esse trabalho no dia seguinte. E não me passou despercebido o alívio que transpareceu nos seus rostos preocupados.
E onde tinha os exames? Ah, em gaveta da minha secretária, no escritório, no primeiro andar, fechados à chave. Se os podiam ver? Sim, claro, mas porquê?
Vamos lá, então.
Abri a gaveta onde estavam os envelopes com os exames. E elas: cá está! Colega, este envelope foi-lhe entregue por engano, vamos substitui-lo por este, e retirou um da pasta, faça favor de conferir se o número de provas está correcto.
Compreendi o que tinha sucedido: por engano, naquele tempo em que ainda não havia computadores, entre os vários envelopes com provas para eu corrigir, tinha-me sido entregue um da minha escola. E aquelas professoras correram até à província em demanda de um desconhecido, que nem sabiam onde morava, indiferentes ao temporal, a expensas próprias, para corrigirem o erro, que nem seria culpa delas, antes que pudesse chegar ao conhecimento público.
Era com este profissionalismo que trabalhávamos nos anos 80. E que continuámos a trabalhar nas décadas seguintes.
Ah, naquele ano, o da PGA — Prova Geral de Acesso (ao ensino superior) — corrigi mais de mil exames, nas quatro fases, sem qualquer redução ou dispensa das minhas funções docentes. Foi duro, não tive escolha, embora esse trabalho fosse pago. E o dinheirito deu-me muito jeito naqueles tempos de penúria.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Palavras, apenas palavras

Tanto a religião como a ciência estão de acordo nisto: o Universo surgiu do Nada. Ou criado por uma divindade, ou como resultado de uma singularidade que originou o Big Bang.
(Divindade e singularidade são apenas palavras, uma criação humana, para mencionar o desconhecido.)
Mas ateus e crentes divergem num ponto fundamental: para os primeiros, não é necessária intervenção criadora: o Nada é instável, a criação de um universo exige uma energia mínima ou até nula (somada toda a energia do nosso Universo, positiva e negativa, dá zero), e as flutuações quânticas não só permitem, mas exigem que no Nada primordial surjam constantemente partículas, umas virtuais outras reais, pelo que os universos podem brotar como cogumelos na floresta após chuvada de Outono e nessa infinidade de universos, um, o nosso, reuniu as condições necessárias e suficientes para o aparecimento de seres capazes de reflectirem sobre a sua criação.
Porém, tal como a existência de um Criador coloca a questão da sua origem, também a criação de universos a partir do nada tem o seu calcanhar de Aquiles: o que é o Nada, porque há nesse Nada leis científicas, por básicas que sejam, a permitir a existência da Mecânica Quântica e respectivas flutuações?
Somos, tanto na hipótese criadora do Universo por divindade, como na materialista, por exigência das leis da Ciência, confrontados com algo pré-existente necessário à criação do Universo, e, eventualmente, de outros universos…
A distingui-las, apenas palavras.