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sábado, 30 de abril de 2016

O galo de ferro

Branquejam pela encosta as paredes das casas, vermelhos os telhados — e, acima de todas elas, sobressai a torre da igreja, encimada por pára-raios agressivamente virado para o céu, servindo de eixo a cata-vento em forma de galo orgulhoso, bico sempre apontado para barlavento, cauda larga para sotavento.
Do galo se diz que é inconstante como a aragem que o faz rodar, mas se o observássemos sem ideias pré-concebidas, dia após dia, ano após ano, melhor ainda, se o pudéssemos acompanhar ao longo das gerações que passam sob o seu olhar indiferente, concluiríamos, como eu próprio já concluí, que também ele tem as suas querenças, visto que, podendo apontar em qualquer direcção, o vejo de manhãzinha virado para Nascente, como se também ele, na sua mudez férrea, quisesse saudar o nascer do Sol, ou o cacarejar que vem dessa direcção lhe animasse uma qualquer molécula orgânica, depositada pelos pardais oportunistas que o usam como poleiro, sujando-o indecorosamente... 
A mim, que raramente termino aquilo que começo, volúvel como o vento, de tal forma que já troco barlavento com sotavento, agrada-me este amigo de outros tempos, testemunha muda de homens e de aragens, que tanto sabe e tudo cala, apenas preocupado em afastar a cauda do desconforto, o olhar vazio fitando o infinito. 

Coisas que não esquecem

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Onde estavas, Zé, no 25 de Abril?

A dormir.
Era uma da tarde e acordou-me a minha mulher, tínhamos casado um mês antes, para me dizer que, segundo boato ouvido na padaria, havia um golpe de estado na capital. "Pois sim, deixa-me  mas é dormir", devo ter respondido, com o sono de pedra dos vinte anos, e voltei a adormecer, não sobre fofo colchão, mas no chão, que cama não tínhamos. 
Naquela semana fazia na fábrica o turno da meia noite às oito e precisava desesperadamente de dormir. Também não tínhamos televisão nem rádio. Nem mobília nenhuma, exceptuando um mocho comprado no mercado.
Vivia na Marinha Grande e trabalhava (operário de plásticos) em Leiria. Motivos: estão em Do lacrau e da sua picada. Chego à cidade ainda de dia, procuro sinais de agitação, nada. Na Praça Rodrigues Lobo encontro o Luís Marques, também ele na clandestinidade, que não via há coisa de um ano. A notícia do golpe de estado trouxera-o até à claridade. Tal como eu, não acreditava que viessem aí grandes mudanças: "Coisas do Spínola e dos spinolistas", terá dito, e eu acreditei. E fui trabalhar, porque o patrão também não tinha ouvido falar em revolução.
Muita coisa mudou. Logo nos dias seguintes, aqueles que até então nos insultavam quando nos manifestávamos nas ruas contra a guerra colonial e o fascismo, que telefonavam à polícia quando pela calada da noite pintávamos paredes, que nos denunciavam como perigosos agitadores comunistas ao encontrarem propaganda nos quartos alugados, reconverteram-se ao vermelho, mas só no cravo na lapela, e muitos tornaram-se guardiães do regime.
Apesar deles, do dia de trabalho para a nação, do fim da luta de classes que apregoavam, o país mudou. Tanto, e para melhor, que está hoje irreconhecível. 
Aos que fizeram a revolução, agradeço a criação de condições para acabar com a ditadura, a sua polícia política, a guerra colonial, para democratizar e desenvolver. Embora, não poucas vezes, tal ter sido conseguido contra eles -- e em dia de festa não é bonito lembrar tais coisas. 
Quanto ao povo, esse está nas praias, aposto, a festejar feriado a que dá tanta importância como ao 5 de Outubro, ao 1 de Dezembro, à Nossa Senhora Não-Sei-de-Quê...

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Sexo e género

SEXO é uma categoria biológica; GÉNERO é uma categoria gramatical. Sobre a categoria biológica, que se pronuncie quem sabe; mas sobre a categoria GÉNERO, lembro que em Português só pode ter um de dois valores: Masculino e Feminino, diferentemente, por exemplo, de línguas como o Inglês, que têm também o GÉNERO Neutro. A gramática de uma língua não é politicamente correcta. É o que é, e importa respeitá-la. Não o fazer, por moderno, ou chic, ou prá-frente que se queira parecer, apenas revela ignorância, que nada abona em favor do partido que até tem líder com mestrado em Linguística. Dizem.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Batatas com pele e fruta por descascar

Parece ter virado moda em tudo o que é restaurante, tasca, boteco, servir as batatas com pele -- a murro. O que era uma receita camponesa, que muito aprecio no tempo da batata nova, generalizou-se. Poupam em mão de obra, poupam na matéria prima.
Acontece que não gosto da pele dura das batatas velhas, e vejo-me em palpos de aranha para a separar da polpa quando me servem tal manjar. Mas há outra razão para querer as batatas descascadas: é na pele que se acumulam os pesticidas utilizados tanto durante a produção como, sobretudo, na conservação. Eu tenho ouvido cada história! -- por exemplo, há agricultores que aquando da colheita mergulham durante 24 horas os sacos de batatas em Decis, um insecticida não homologado para o efeito. Ou noutro qualquer, que tenham em armazém para combate ao bichado da fruta!
Depois, há os tratamentos regulares, no mínimo mensais, com insecticidas em pó para combater a traça da batata (a "fia-maria" , diz-se na minha terra) e antiabrolhantes para evitar que grelem, perdendo peso e qualidade.
E então, mesmo bem lavadas, o que pouco adiantará pois os pesticidas costumam ser resistentes à lavagem, seguem para o forno com a casca onde os resíduos se acumularam -- o que não mata engorda, diz o povo.
Batatas assadas a murro -- sim! Mas novas, quando a pele é tenra e ainda não receberam cobertura de pesticidas. E apenas das minhas, que sei o que levaram, quando levaram.
Dir-me-ão: assim, não podemos comer nada! Discordo. Precisamos é de saber o que comemos. Os supermercados deveriam apresentar garantias de que batatas, fruta, hortaliças foram analisadas e estão isentas de resíduos químicos ou que estes se encontram abaixo dos limites internacionalmente fixados. E, para vos preocupar um pouco mais, acrescento que não são as grandes associações de produtores que estarão em incumprimento, mas, mais provavelmente, os pequenos agricultores que, mal informados, vendem os "bons" produtos do campo sem controle, especialmente nas regiões de minifúndio, em que estreitas leiras de horta pegam com pomares, nada impedindo que as hortaliças frescas vendidas na praça ou mercado pela manhã tenham levado banho de pesticida que o vizinho aplicou no seu pomar durante a noite, quando faz menos vento...
A fruta -- só como da minha, e na época -- fica para outra ocasião. Mas descasquem-na, se não for da vossa árvore. E não obriguem as crianças, como tentaram fazer em tempos a um dos meus netos na escola, a comer a fruta com casca.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

A etimologia de um palavrão

Ainda eu era professor quando uma aluna de 12 ano, a protestar contra preconceitos, me deu como exemplo a palavra "caralho", que, dizia ela, se reportava a um dos mastros das caravelas, pelo que mandar alguém para o dito cujo significava, no tempo dos Descobrimentos, mandar subir ao mastro. Sempre valorizei, e muito, o facto de os meus alunos serem capazes de pensar pela própria cabeça e de defenderem os seus pontos de vista com argumentação sólida e nunca me agastaram assuntos ou palavrões, contanto que fossem discutidos com seriedade, como era o caso.
Porém, duvidei da etimologia e prometi verificar. Porque, como lhe disse, eu já tinha encontrado a palavra, ou o palavrão, em textos muito mais antigos, por exemplo nas Cantigas de Escarnho e Maldizer e lembrava-me até, mas não citei, de uma de Afonso X, rei de Leão e Castela, que exaltava o peninsular, "cuja grossura sua" as damas preferiam.
Assim fiz. Mas a falsa etimologia do palavrão parece ter-se tornado "mito urbano", estribado na crença actual de que toda a informação encontrada na internet é igualmente válida, agravada com a falta de exigência quanto ao rigor das fontes.
Na falta de um dicionário etimológico credível, o Professor Lindley Cintra, de quem tive o privilégio de ter sido aluno a Literatura portuguesa III (Teóricas) e Linguística Românica, recomendava o Dicionário da Porto Editora. Continuo fiel aos ensinamentos do Mestre por nada de novo ter surgido de então para cá em termos de dicionários etimológicos.
E é esta a a tipologia proposta no referido dicionário: "Do latim *caraculu-, «pequena estaca»"
Aqui vai portanto a correcção, embora convencido da inutilidade. A palavra é, repito, muito anterior aos Descobrimentos, o que não invalida que nessa época a possam ter empregado para designar mastro de caravela ou nau. 

terça-feira, 5 de abril de 2016

Segurança Social e obras públicas

Desaprovo e fico muito preocupado com a decisão de António Costa de usar 1400 milhões de euros da Segurança Social para financiar um programa de construção e recuperação do património. O dinheiro dos trabalhadores jamais deveria ser usado para financiar os patrões, no caso as grandes construtoras que tanto têm lucrado com a política de betão e obras públicas. 
Que me diz a isto, camarada Jerónimo? Outro sapo vivo que vai engolir?

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Chuva e fome

A chuva que insiste em nos incomodar, e a mim me impede de plantar as batatas, era há apenas meio século causa de desemprego e fome -- e não era a fome de que hoje os jornais nos falam, era aquela com que se definhava e morria, que não havia então subsídios, nem apoios, nem banco alimentar contra a fome, nem solidariedade organizada. Nesse tempo duro, de penúria e de falta de quase tudo, passei por privações hoje inimagináveis, embora nunca tenha passado fome, nem andado descalço e semi-nu à chuva por falta de roupa e calçado. Mas vi, recordo, e dei testemunho, quanto mais não seja para que se nos queixarmos de barriga cheia, não o façamos na ignorância daquilo por que os pais de muitos de nós passaram.
"Chuva e vento, vento, chuva e frio. Gemia água a terra, rebentaram as nascentes, os regatos cresceram até serem novamente rios, submergiram as pontes, matando mesmo a filha do Mouco. De manhã, atravessara com outras mulheres o rio de Cós, que no Verão é apenas um humilde fio de água, levando o jantar ao homem, empregado na padaria, as outras seguindo para a Castanheira, com o comer para os companheiros, que laboravam num lagar de azeite. Demorou-se, ajudando-o a carregar as braças de pinheiro ainda verdes com que aquecia o forno, mal protegidas da chuva numa arribana próxima, e no regresso encontrou a ponte já submersa pela inundação. As companheiras recearam atravessar a enchente, mas, ou afoita ou em fezes pela criança de dois anos que deixara sozinha fechada em casa, certamente a chorar desalmadamente há horas, acordando só e sentindo-se talvez abandonada, aventurou-se. Quando já estava na outra margem, afundou-se subitamente numa cova oculta na água barrenta e, apesar de não ter perdido o pé, o ar contido nas roupas levantou-a e a enxurrada arrastou-a sem que ninguém lhe pudesse valer; só no dia seguinte o corpo foi encontrado, numa várzea do Valado.
E um dia, inevitáveis como o Inverno que a todos atormentava, apareceram os pexins. Há meses que não podiam pescar, a fome apertava. E apertava-se a garganta dos camponeses ao verem aqueles homens valentes, que não receavam mar e temporais, pedindo esmola por amor de Deus. Os cavadores, também eles impedidos pelo mau tempo de ganhar o sustento, comoviam-se e cada um dava o que podia: um punhado de batatas miúdas, das mesmas que a mulher cozia para os porcos, uma tira de toucinho, uma ou outra maçã ou passas de uva, figos secos, uma fatia de broa e, sempre, um copo de água-pé ou um rijo mata-bicho, aquecendo o corpo e queimando as tristezas, que, bem o sabemos, nem dão de comer nem pagam dívidas.
Então, abrigados nas adegas, ouviam os pescadores horas e horas a fio enquanto fora a chuva batia nas paredes, jorrava dos beirados, corria pelas ruas, fazia transbordar as regueiras, transformando tudo num mar de água. As conversas corriam soturnas como o tempo, recordando os entes queridos levados pelo mar na longínqua Terra Nova, na costa de Peniche, às vezes até junto à Nazaré, mesmo à vista das famílias. E partiam, as ceroulas de flanela arregaçadas pelas canelas, os pés descalços, por poças e atalhos, mendigando pelas aldeias que atravessavam, guardando nos sacos de serapilheira que carregavam às costas a pobre dádiva dos pobres, a quem também escasseava o sustento para si próprios e para os seus; partiam, levando com que mitigar momentaneamente a fome à família enquanto os homens da terra permaneciam nas adegas e arribanas ou iam para a taberna beber fiado.
Como pregoeiro do mau tempo, entoando na gaita-de-beiços a triste melodia do inverno, chegou o amola-tesouras, tentando atrair freguesas com o mesmo assobio com que na Primavera se oferecia para capar os porcos, os mesmos alforges na bicicleta, de onde agora extraía um esmeril para afiar facas e tesouras, alicate e arame fino para consertar as varetas de chapéus de chuva. Também para o galego os tempos estavam maus, calcorreando estradas alagadas e caminhos de lama, a bicicleta à mão, sempre debaixo de chuva inclemente, para ganhar um cruzado aqui, outro ali.
Chegou o cesteiro, instalando-se ora numa adega ora noutra, e habilidosamente entrelaçava vergas fazendo cestos onde as camponesas transportariam ovos ou fruta, poceiros para as uvas na vindima, poceiras para a fruta que venderiam nas praças de Alcobaça ou de Pataias, poceirões onde os burros carregariam o esterco para as hortas quando o tempo levantasse. Ao contrário da formiga, trabalhava de Inverno, mas só receberia mais tarde, talvez apenas no final do Outono: — Pago-te quando vender um casco de vinho..., ambos sabendo que o mais difícil é receber, seja a jorna ganha seja o vinho vendido."
José Cipriano Catarino, Entre Cós e Alpedriz, Leyaonline